O Globo
Pena que ele recebeu é superior à aplicada a
Sérgio Nahas pelo assassinato da mulher a tiros
A condenação de Léo Lins a mais de oito anos de prisão e multa dividiu o país. A enorme controvérsia não diz respeito particularmente ao humorista ou ao tipo de humor que pratica, mas às enormes implicações de uma regulação dura da liberdade de expressão. Para ter uma ideia, a pena que ele recebeu é superior à aplicada a Sérgio Nahas pelo assassinato da mulher a tiros. Se uma condenação duríssima como essa passa incontestável e se estabelece como precedente para condenações futuras, quais as implicações para o exercício da liberdade de expressão, em especial no âmbito do humor?
Regular a liberdade de expressão é delicado e
deve ser feito com mão leve, levíssima. Ela é um dos fundamentos da democracia.
Sem a liberdade de examinar e criticar o poder, nenhuma democracia subsiste.
Entre as muitas formas de crítica, o humor merece atenção e proteção especial.
Mas a liberdade de expressão não é um direito
acima dos demais. Quando colide com outros, precisa ser regulada. Obviamente,
ela não deve abarcar a exortação de um crime (“Vamos invadir o Congresso!”) ou
o preconceito racial (“Prefiro não contratar negros”).
O debate, portanto, está em onde estabelecer
os limites e a severidade da punição quando se julga que foram ultrapassados.
Tudo fica mais complicado quando se trata do humor, seja porque é um gênero
cheio de regras próprias e nuances, seja porque tem uma função política
historicamente reconhecida e protegida.
No final da Idade Média, o bobo da corte
tinha licença especial para insultar e criticar o monarca, direito que nenhum
outro súdito usufruía. Nos tempos modernos, o Direito, em muitos países, se
desenvolveu conferindo proteções especiais e salvaguardas à sátira política.
Assim, a sátira e o humor político se transformaram em pilares da esfera
pública política.
O humor também tem regras internas. Se é
verdade que, em alguns casos, simplesmente insulta e ri do inferior, noutros
pode ser resultado de quebra de expectativas ou do alívio cômico de uma tensão.
Às vezes, o tema da piada é alguém alvo de preconceito. Mas o mecanismo do riso
não é a inferiorização, e sim a quebra de expectativa ou o alívio da tensão.
Devemos tratar esse humor como injurioso? Na sentença que condenou Léo Lins
vemos os dois tipos de caso tratados sem distinção.
Além disso, um show de humor é uma
performance artística. Por um lado, o comediante encarna uma persona cômica, e
há reconhecimento tácito do público de que ali não fala o cidadão Leonardo, mas
a persona Léo Lins. Por outro, porém, o formato da apresentação stand-up é um
monólogo em que a persona tem o mesmo nome do ator, e há obviamente um jogo de
tensão entre ficção e realidade, como na literatura de autoficção
contemporânea. Essa duplicidade sutil precisa entrar em conta na avaliação do
caso — e está completamente ausente da sentença.
Por fim, é preciso entender que os limites da
liberdade de expressão são o tema do humor de Léo Lins. Em várias passagens de
seu show, ele explora os limites do que é legal e socialmente permitido e
pretende ampliá-los fazendo rir do que é proibido. Há, portanto, uma dimensão
metacrítica do caso, e condenar o show, em algum sentido, também é limitar a
crítica às leis e convenções vigentes. Esse deveria ser mais um motivo para uma
punição menos severa.
O caso de Léo Lins representa um ponto de
inflexão no debate sobre os limites da liberdade de expressão no Brasil.
Discursos que veiculam injúria racial ou preconceito podem e devem ser punidos,
mas a sentença de Léo Lins aplica uma pena completamente desproporcional,
desconsiderando as particularidades do gênero humorístico e a função política e
cultural do riso como forma de crítica social. Apenas em ditaduras, piadas
impróprias recebem punições mais severas que assassinatos.
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