- O Estado de S. Paulo
Falamos em golpes de Estado e impeachment da presidente. E veiculamos crenças no sistema democrático. Fantasmas de golpismos são aventados, mas os golpes reais se efetivam nos gabinetes palacianos. Luiz Inácio da Silva é hoje o governante de fato. Trata-se de um golpe de Estado digno de Maquiavel, Gabriel Naudé e outros clássicos da política. Muitos acadêmicos e jornalistas dogmatizam sobre as nossas instituições. Eles proclamam a “normalidade institucional”, mas ignoram o que é o golpe de Estado. Um deles mudou a Presidência da República. A pessoa eleita serve de anteparo para uma prática ilegítima. Como diz Carl Schmitt, soberano é quem decide sobre o estado de exceção. No Executivo decide Luiz Inácio. Temos um regente não autorizado pelo direito público, usurpação explícita e confessada. E tal fato não pode ser dito “normal”. A interpretação dos golpes de Estado vem da Antiguidade. Já Aristóteles pensa o fenômeno. A ordem moderna conheceu sua prática e teoria. Mas no Brasil o conceito ainda não foi assimilado, pois “golpe” é visto como ação de quartéis e manobras jurídicas. Em matéria golpista existe bem mais do que sonha - ou delira - nossa vã filosofia.
Não discutimos muito o poder popular e a responsabilidade administrativa que fundamentam a democracia e o afastamento do poder no mais alto cargo. A corrupção distorce o exercício das funções públicas. Na Grécia, origem dos nossos costumes políticos, existiram diplomas legais contra o suborno político. Eram quatro leis: a graphe doron, que proibia dar e receber presentes ilicitamente, a graphe dekasmou, para a compra de corpos judiciais, a graphe doroxenias, para coibir um júri de livrar o réu por ter dele recebido pixulecos. Havia outra lei, não nomeada, para punir promotores ou testemunhas que receberam agrados. A assembleia se unia ao Areópago para investigar e fornecer o primeiro veredicto sobre casos de corrupção. Temos aí os germes das comissões parlamentares de inquérito. Apesar de semelhantes leis, a democracia ateniense conheceu a leniência, o que gerou o tom enfático dos escritores éticos contra o fato corruptor (Conover, Kellam: Anti-bribery Legislation in Practice: how legal inefficacy strengthened the Athenian Democracy).
Além das normas citadas, uma era dirigida contra o péssimo exercício do poder, a eisangelia. Não existe poder democrático sem que o povo seja de direito e de fato soberano. É com tal pressuposto que os ingleses do século 17 retomam a ideia da eisangelia, traduzida por impeachment. Ela se aplica quando uma autoridade (rei, deputado, juiz, bispo) não cumpre a lei e não presta contas satisfatórias ao povo dos recursos naturais, econômicos, humanos. Tal é a base histórica da accountability instaurada pelos gregos. É também o mesmo núcleo de noções que hoje determina o recall. O debate sobre tais pontos deveria partir da gênese democrática, verificar se eles podem e devem ser assumidos em nossos tempos, e quais as garantias de sua aplicação sem desvios despóticos, demagógicos, etc.
A eisangelia destina-se a punir governantes infiéis que prejudicam o erário. Os acusadores eram punidos se a causa não tivesse bom fundamento. Por muito tempo o acusador era livre da multa de mil dracmas e perda dos direitos civis caso desistisse do processo ou falhasse em conseguir um quinto dos jurados. Tal prerrogativa, abusada por sicofantas, foi abolida no quarto século, mas só em relação à multa. Foi mantida a perda dos direitos políticos dos acusadores incapazes. Árbitros (diaitêtai) também eram submetidos ao afastamento por má conduta. A mais importante eisangelia era destinada aos crimes contra o poder público, como ardis para subverter a Constituição, péssima conduta na gerência dos assuntos financeiros, juiz ou promotor que aceitasse agrados, etc. Seria punido, se preciso com pena de morte, quem tentasse enganar o povo. Todo julgamento por eisangelia era autorizado por decreto da assembleia, que às vezes definia as penalidades a serem aplicadas (David Stockton: The Classical Athenian Democracy).
Na assembleia soberana qualquer cidadão pode começar o processo de eisangelia denunciando um governante ou pessoa privada. Se a assembleia decide ser preciso responder à acusação, começa o julgamento por uma agenda especial. Se o caso é sério o processo vai às cortes de Justiça (John Thorley: Athenian Democracy). A eisangelia também se aplica aos juízes negligentes, pune os pais pelo tratamento ruim dado aos filhos e parentes e maridos por maltratarem as esposas, etc. Por iniciativa de Sólon o Areópago “julgou, segundo a eisangelia, os acusados de conspiração para dissolver a vida democrática” (Aristóteles, cf. Hansen, M. H. Eisangelia: The Sovereignty of the People’s Court in Athens in the Fourth Century BC and Public Action Against Unconstitutional Proposals).
Seria uma inovação golpista restaurar a rigorosa eisangelia no Brasil? É algo a ser examinado com prudência, mas não descartado. A falta de mecanismos semelhantes ou a presença de formas não democráticas, como a prerrogativa de foro, causam arrogância e impunidade em muitos políticos, vários magistrados e outros. E tal vácuo distorce a ética pública ou privada, oferece a cena perene da renitente desobediência à lei, cria indivíduos poderosos que não se responsabilizam por seus atos e pelos de seus auxiliares. Em qualquer Estado do planeta onde um governante afirma ignorar o que fizeram seus ministros e secretários, ele sofreria processo de responsabilização. E tal procedimento integra a democracia, porque é baseado na accountability, no fato de que soberano é o povo. Ah, se no Brasil vigorassem leis eficazes contra presentes oferecidos aos poderosos! Ah, se nossas empreiteiras fossem impedidas realmente de agradar a administradores públicos! Muitos palacetes assim adquiridos causariam processos por eisangelia, afastamento ou impeachment. Mesmo que, devido a um golpe de Estado, o enriquecido particular usurpasse o poder máximo da República.
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Roberto Romano professor da Unicamp, é autor de 'Razão de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)
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