quinta-feira, 29 de junho de 2017

De Curitiba ao Japão | Marcelo Coelho

- Folha de S. Paulo

Por cerca de duas horas, o ministro Gilmar Mendes pronunciou um voto sistemático, minucioso e muitas vezes brutal. Discutia-se, no STF (Supremo Tribunal Federal), a legalidade da delação premiada feita por Joesley Batista, da JBS.

Por maioria, o Supremo Tribunal Federal já tinha decidido a favor de sua aceitação. Mas havia um problema de fundo, e Gilmar Mendes foi longe nesse exame.

Com as ações do Ministério Público na Lava Jato, disse o ministro, está sendo criado um novo (e aberrante) sistema jurídico. É o "Direito Penal de Curitiba", repetia Gilmar.

Ele deu diversos exemplos de abuso. O caso mais conhecido foi o de um acordo de delação premiada em que Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, teria de dar parte do dinheiro roubado para os cofres do próprio Ministério Público.

Seria uma espécie de pagamento à promotoria? Esse ponto do acordo terminou anulado na Justiça ""mas sinaliza, para Gilmar Mendes, até onde o Ministério Público está disposto a ir na sua ignorância da lei.

O Ministério Público acusa de crime qualquer parlamentar ou magistrado que simplesmente pense em modificar a lei de abuso de autoridade.

Delatores como o doleiro Alberto Youssef e Ricardo Pessoa, da UTC, tiveram suas penas diminuídas para além do que se permite na legislação.

No caso da Odebrecht, delatores e Ministério Público combinaram a duração de penas e seu cumprimento imediato, sem que nenhum magistrado tivesse julgado o caso.

Com Joesley Batista, combinou-se que não haveria nenhum processo contra ele. Isso é permitido na lei, desde que o delator não seja chefe de quadrilha –e o dono da JBS seria apenas participante de uma quadrilha maior.

Não é bem assim, argumentou Gilmar. Uma organização de grandes dimensões não tem chefe único. Quem é o líder do PCC, do Comando Vermelho? São verdadeiras federações, com vários chefes.

No caso de Joesley, caberia examinar, na hora do julgamento, se ele é chefe ou não. Só que, pelo acordo, não haverá julgamento: ele já foi inocentado. Contradição patente.

De modo geral, o que se vê é a Procuradoria-Geral da República assumindo o papel de juiz, estabelecendo penas e usando investigações para intimidar a própria magistratura.

Não é exagero falar em Estado policial, quando qualquer delatado, inocente ou não, vê sua honra e mesmo sua carreira política destruídas, em ações puramente midiáticas.

Sim, os acordos de delação dependem de um juiz que os homologue. Mas esse exame é superficial, disse Gilmar Mendes. A própria presidente do STF, Cármen Lúcia, homologou 77 acordos com funcionários da Odebrecht em poucos dias.

Tal decisão não torna o acordo intocável para sempre. Seria tirar do juiz o poder de estipular as penas que achar corretas.

Ele tinha um último petardo a disparar. O juiz é quem decide a pena, repetiu, e não o Ministério Público. Sabem quem declarou isso? "O juiz Sergio Moro", disse Gilmar. "Aqui, parece que não concordamos com ele..."

A voz de Gilmar Mendes assumia tons cada vez mais graves e roucos; toda sua fúria contra Rodrigo Janot se aplacava e renascia ao longo do voto, recheado de frases em alemão.

"Não farei aqui o julgamento do estimado Procurador-Geral", brincou Marco Aurélio, restringindo-se a aprovar a delação de Joesley. Mas ele ainda não tinha dado a última palavra.

Para Celso de Mello, tudo caminha nos trilhos. Os membros do STF examinaram, e suspenderam em várias oportunidades, pontos ilegais nos acordos de delação.

É isso: o juiz homologa ou não o combinado. Daí a importância do exame inicial. Depois, a não ser que a delação seja mentirosa ou sem valia, nada pode ser mudado.

Exagera-se a importância desse momento preliminar, divergiu Marco Aurélio.

Afinal, a homologação é tudo, ou não é? A discussão recomeçou. Luís Roberto Barroso considerava que o juiz tem de obedecer ao acordo; Marco Aurélio recusava essa obediência.

Celso de Mello aceitava. Citou decisão do próprio Supremo, fixando que seria desleal romper o combinado pelo Ministério Público. Citou até o código penal japonês. Apesar de resolvido o caso Joesley, os ministros do STF não falavam a mesma língua. Nova sessão foi marcada para esclarecer o ponto.

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