domingo, 20 de janeiro de 2019

Luiz Sérgio Henriques*: Sobre vieses e viseiras

- O Estado de S.Paulo

Nada parece indicar ares mais amenos nos dias que virão

Há já algum tempo não temos sido poupados de incômodos vieses, viseiras e amarras ideológicas, a pesarem como bolas de chumbo, e nada parece indicar ares mais amenos nos dias que virão. Deixando de lado o intermezzo representado por Michel Temer, generaliza-se a ideia de que na troca de guarda, em si natural, entre os governos da era Lula e o novo governo da ultradireita, afinidades eletivas se substituem umas às outras sem um padrão racional discernível, trocam-se preconceitos tanto na política interna quanto na externa, num jogo de espelhos que pretende repetir-se indefinidamente e, com isso, deformar a percepção das prosaicas questões reais.

De nada fomos poupados – ideologicamente – nos anos de ascensão e auge do petismo. Seria natural, para ficar em política externa e nas afinidades que ela propicia, que um partido de esquerda – e de resto qualquer partido – buscasse contatos e relações com seus pares, especialmente na própria região. Provincianos como muitas vezes somos, esquecemo-nos de que a política tem constitutivamente um nexo nacional-internacional, e a troca de ideias, a busca de convergências e mesmo o apoio mútuo, respeitadas as normas constitucionais, constituem recursos preciosos para agremiações comprometidas com a estabilidade das respectivas democracias e, ao mesmo tempo, com a realização de propósitos mudancistas.

O que não era natural, e mais uma vez nos perderia, foi a associação entre partidos cuja natureza deveria ser essencialmente diversa: uma coisa é o “Ocidente” político, no qual felizmente nos encontramos desde 1988, outra é o “Oriente”, com suas revoluções nacional-populares, seus caudilhos que jamais se despedem, sua retórica “anti-imperialista” e a invariável denúncia dos “inimigos da pátria” e dos “agentes da CIA”. Uma vez afundado em tal terreno movediço, erguer-se daí requer as artes do Barão de Münchhausen, o que parece estar além das capacidades do atual grupo dirigente petista, como o comprova o apoio alucinado à violação maciça dos direitos humanos perpetrada na Venezuela de Chávez e de Maduro.

Uma esquerda tão desprovida, se não existisse, teria de ser inventada pela extrema direita que ora ensaia seus primeiros passos no governo do País. Deve-se constatar, de início, que a linguagem do poder, especialmente de vocação autoritária, nunca é muito original: também no universo da ultradireita temos de nos haver eternamente com inimigos internos e agentes de ideologias exóticas, como se homens e mulheres de esquerda não pudessem ser atores legítimos numa democracia digna do nome ou, ainda, como se fosse possível imaginar um Brasil sem Graciliano, Niemeyer, Portinari ou Gullar.

Mas não nos interessam tanto a cultura ou as infames “guerras culturais” que, envenenando generalizadamente o discurso público, poderiam justificar e até dar tons ainda mais obscuros ao proverbial pessimismo que orientou, ou desorientou, a obra de tantos pensadores que se debruçaram sobre a grande crise existencial moderna. Aqui não se trata de filosofia, mas da resposta dada por próceres do novo oficialismo à crise em curso da globalização – uma resposta mais vulgar, certamente, mas nem por isso menos capaz de incidir nos nossos destinos individuais. Curiosamente encontraremos pontos de contato significativos entre as posições extremadas, que, como sugere o senso comum, muitas vezes se tocam e vivem parasitariamente umas das outras.

Em lugar do culto – retórico e irresponsável – da “revolución” ou, no mínimo, de uma América Latina em pé de guerra contra o “neoliberalismo”, tem-se agora a proposição paradoxal de um nativismo extremado, mas associado subalternamente ao nacionalismo de feitio trumpista, com tinturas de ideologia religiosa. O “Deus de Trump” vê-se convocado a deter o declínio do Ocidente diante do que outrora alguns chamavam pejorativamente de “perigo amarelo”. E o Ocidente em estado de sítio não é mais o território ideal em que se entrelaçaram, em percurso acidentado, mas afinal virtuoso, sucessivas camadas de direitos civis, políticos e sociais, com a participação decisiva das classes populares – em outras palavras, de setores que podemos considerar genericamente como “esquerda”, em qualquer uma das suas várias florações e fossem quais fossem suas contradições e seus limites.

Estamos longe, pois, do que um representante da ala ultraliberal do bloco no poder, recorrendo a um intelectual relevante como Popper, evocava como “sociedade aberta”. Talvez não seja forçar demais o paralelismo afirmar que, a partir de Trump e seus avatares de menor importância, o que temos é uma versão arcaica do nacional-popular. O “povo-nação” aqui aparece em roupagem essencialista: uma metafísica arrogante, mas sombria, que só se pode expressar politicamente como nacionalismo ressentido, construtor de muros e fomentador de conflitos. Não por acaso, a América de Trump hoje rechaça o mundo que ela própria, nos momentos em que contava – também – com admirável soft power, contribuiu para criar, dando alguma ordem possível às coisas relativas à nossa humanidade comum.

Não se pode saber muito bem o que o País teria a ganhar emulando a precária trilha trumpista rumo a uma América do Norte momentaneamente desencontrada de si mesma e dos seus ideais fundadores. Mas a ideologia, como ninguém ignora, não apenas mascara ou dissimula interesses que um indivíduo ou um grupo não têm coragem de expor à luz do dia. Mais além disso, ela desenha a estrutura mental em cujo contexto percebemos dramas e fatos da vida. Enquadra hábitos, sugere inclinações, motiva afetos. Por isso, vieses e viseiras ideologicamente fossilizados, caso se generalizem, são fatores de regresso civilizatório. Seria bem exagerado dizer que passamos do ponto de não retorno, mas, ao que parece, Darwin não anda mais na zona de conforto.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil.

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