- Folha de S. Paulo
Banalização da vida é resultado do racismo e da desigualdade
João Pedro, 14, foi morto por forças policiais no quintal de sua casa, enquanto brincava com seus primos. Seu corpo ficou desaparecido por cerca de 16 horas, aumentando o desespero de seus familiares. Já o corpo de Valnir da Silva, 62, possível vítima do coronavírus, ficou exposto por mais de 30 horas numa rua de outro bairro pobre do Rio de Janeiro, sem causar maior consternação em quem jogava bola no terreno ao lado. São retratos cotidianos da barbárie e da negligência a que estão submetidas largas parcelas da sociedade brasileira.
O racismo e as profundas desigualdades que estruturam a sociedade brasileira dificultam que nos vejamos como parte de uma mesma comunidade, ligada por laços de respeito e obrigações recíprocas. A vida de um morador de rua parece não ter nenhum significado. São seres moralmente invisíveis. Suas necessidades e sofrimentos não geram nenhuma dor; menos ainda gestos de solidariedade. A morte desses seres invisíveis, seja pelo coronavírus ou pela bala, não tem sido capaz de gerar uma reação que transforme a sociedade brasileira.
O racismo e as desigualdades também favorecem um outro fenômeno, ainda mais perverso, que é a demonização de diversos grupos sociais. Feitos inimigos, a eliminação desses setores é motivo de júbilo. Não é apenas a morte de suspeitos que é incentivada e comemorada. Basta que sejam negros e estejam no local e hora errada. Também são vistos como inimigos o índio que se contrapõe à devastação da floresta, o trabalhador e o estudante que busquem melhores condições de vida. Como deixou claro o ministro da Economia, se ousarem protestar como no Chile, será necessário um novo AI-5.
A luta contra o racismo, a desigualdade e todos os males que eles provocam pode ser motivada tanto por razões morais como por mera prudência. Para uns, a discriminação e a desigualdade são eticamente inaceitáveis, devendo a sociedade e o Estado, que a representa, fazerem todos os esforços para superá-los. É uma espécie de decisão essencial de quem queremos ser como comunidade e que tem impacto sobre como estruturamos o sistema tributário e de bem-estar, assim como em nossa decisão de repudiar e punir quem atentar contra a dignidade humana.
A luta contra esses males também pode ser motivada por razões não altruístas. Sabe-se que as sociedades muitos desiguais e marcadas pelo racismo e ausência de oportunidades são mais conflitivas, instáveis e inseguras. A falta de condições educacionais, sanitárias, habitacionais e de segurança, para ficar apenas com as necessidades mais essenciais, também reduz a produtividade e a competitividade. Melhor, então, prover algum bem-estar. É o preço a ser pago por certa paz social e pela prosperidade.
A natureza extrativista de setores que têm dominado a vida política e econômica brasileira, assim como a omissão e conivência dos estratos remediados de nossa sociedade não permitiram estabelecer uma sociedade menos desigual, disfuncional e violenta, pavimentando a ascensão ao centro do poder nacional dessa “necropolítica” que há muito imperava nas periferias brasileiras e que hoje zomba, dá de ombros e incentiva a morte de tantos brasileiros, como João Pedro e Valnir da Silva. E daí?
A essas famílias, minhas condolências.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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