O Globo
O mundo precisa lavar-se e pausar por uma
semana, escreveu em 1947 W.H. Auden, um dos mais admiráveis autores de língua
inglesa do século XX. O verso no original tem aparência ainda mais simplória
quando retirado de seu conjunto — o monumental poema “The age of anxiety” (A
era da angústia), quase tão extenso quanto um livro. Nele, Auden trata da busca
humana por algum significado e identidade no mundo cambiante do pós-Segunda
Guerra. Na narrativa em verso, quatro personagens reunidos num bar de Nova York
contemplam onde foram parar suas vidas, sonhos e perdas. Hoje, passados quase
80 anos, cá estamos, igualmente aflitos e perturbados com a condição humana, o
tempo a escoar, a pandemia a cavalgar, o futuro de cada um em suspenso.
Juventude, posses, família, relacionamentos, esperança, status social, tudo
parece incerto, adiado ou precário.
Aquém do noticiário nacional de emergência
máxima (a combustão acelerada de Jair Bolsonaro graças à investida letal da CPI
da Covid), sempre aparece um fait-divers que também diz montes sobre o Brasil
miúdo. Dias atrás, o repórter Artur Rodrigues, da Folha de S.Paulo, pinçou um
anúncio publicado num site de vagas de emprego, o Trabalha Brasil. Rodrigues
apontou uma novidade trazida pela Covid-19 ao anúncio: a exigência de a candidata
ao emprego ter tomado a vacina da Pfizer.
Pela descrição da vaga em Campinas (SP), um casal oferecia R$ 1.600 mensais a uma “babá/governanta” para cuidar de duas crianças, organizando suas rotinas, alimentação, atividades diárias (estudos, cursos, lazer). Fossem estrangeiros, a remuneração oferecida seria escandalosa. Pagar o equivalente a US$ 320 mensais por 160 horas trabalhadas (ou seja, US$ 2 a hora) é tido como ilegal em qualquer país desenvolvido do planeta. A exigência de cinco dias da semana no emprego, mais meio sábado, por salário tão minguado também seria tachada de exploração abusiva.
No Brasil de quase 15 milhões de
desempregados, é provável que não faltassem candidatas. Mesmo assim, não seria
fácil encontrar quem coubesse no figurino nobre (além da vacina de grife, ter
boa bagagem cultural, carteira de motorista, “responsabilidade pela residência
e suas dependências”) e também na realidade nativa de sempre: apenas uma folga
remunerada por mês (ou 15 dias de férias ao ano), limpeza e serviços domésticos
quatro ou cinco vezes por semana.
O anúncio preferiu não explicitar a
preferência por cor.
Numa sociedade que ainda não conseguiu
acabar com a função segregadora de seus elevadores de serviço, algumas mudanças
são bem mais resistentes que a Covid-19. Elevadores existem em qualquer país do
planeta, sendo indispensáveis para a entrega de cargas. Só nos mais racistas,
porém, é preciso armar barraco no condomínio para fazer cumprir a lei que
proíbe toda sorte de discriminação. Sempre é bom relembrar a história contada
pelo saudoso geógrafo baiano Milton Santos, de uma experiência vivida por ele
na Salvador dos anos 1950. O professor fora visitar um amigo recém-instalado
num edifício inaugurado havia pouco. Surpreendeu-se ao entrar no ascensor dividido
por uma partição mambembe com duas sinalizações — “social” e “de serviço”. À
falta de dinheiro para instalar dois elevadores, foi a solução encontrada pela
incorporadora e pelos condôminos para honrar a divisão de castas.
Vem aí, portanto, a inevitável
discriminação social por vacinas. Pode-se entender o desejo frenético por uma
agulhada da Pfizer, considerada imunizante de grande eficácia contra o vírus
(94% para prevenir os sintomas). Mas ele é, e continuará sendo por longo tempo,
inalcançável para a imensa maioria dos brasileiros. Ainda chafurdamos num país
que estende o braço sem encontrar vacinas — o índice de apenas 12% de vacinados
com duas doses não é uma fatalidade, e sim um crime de irresponsabilidade, da
mesma forma que é crime o Brasil ter mais de 510 mil vidas jogadas fora pelo
desvario do governo.
Ninguém, nem país algum, será o mesmo de
antes da chegada da pandemia. A questão é saber se estamos a construir um
futuro melhor que nosso passado. O tempo corre. Para o poeta grego C.P. Cavafy,
quando falamos em ‘‘tempo’’, falamos de nós mesmos. “Quase todas as abstrações
não passam de pseudônimos. Nós somos o tempo”, escreveu ele. Se assim é, temos
uma grande chance para o amanhã no Brasil.
“Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas
que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para ser salvas, desejosas
de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas
queimam, queimam, queimam…”, escreveu Jack Kerouac. Não é preciso tanto. O
caminho está apontado pelos senadores da CPI da Covid.
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