O Globo
O recém-aprovado relatório da CPI da Covid
centrou esforços na atribuição de responsabilidade e punição — sobretudo do
presidente da República, indiciado por nove tipos penais, incluindo crime
contra a humanidade — pela tragédia que já ceifou a vida de 605 mil
brasileiros. Não descuidou, contudo, de propor arcabouço legal para que o
enfrentamento fracassado à pandemia não se repita, em caso de outro desgoverno,
nem de sugerir reparação financeira a famílias em situação de vulnerabilidade
socioeconômica e necessária homenagem aos mortos.
O relator Renan Calheiros recomendou — e o grupo majoritário da comissão parlamentar referendou — a aprovação de projetos de lei, já em tramitação no Congresso Nacional, que instituem pensão aos dependentes, sobretudo órfãos menores de idade. Para que o massacre não seja esquecido, há proposta de fazer do 12 de março, data da primeira morte no país, o Dia Nacional em Homenagem às Vítimas de Covid-19, bem como de instalar no Senado um memorial.
Espaços de memória são agenda secundarizada
num país habituado a soterrar a História e que, na pandemia, negligenciou
prevenção e enfrentamento à doença. Por isso, o Brasil contabilizou dezenas de
milhares de mortes evitáveis — estimativas apresentadas à CPI vão de 120 mil,
pela sabotagem às medidas não farmacológicas, a 400 mil, pela demora na
vacinação. Mas homenagem e lembrança consolam sobreviventes que não puderam
sequer oferecer sepultamento digno ou rituais adequados de despedida a seus
amados.
No fim do ano passado, organizações da
sociedade civil, com apoio do Pnuma, a agência da ONU para o meio ambiente,
estruturaram o projeto Bosques da Memória. Em honra aos mortos e em gratidão
aos profissionais de saúde da linha de frente, recomendaram ações de plantio de
árvores, conservação da vida selvagem e recuperação de florestas. Quando a
campanha foi lançada, em dezembro passado, como marco inicial da Década da
Restauração de Ecossistemas 2021-2030 estabelecida pela ONU, a ideia era
plantar 200 mil árvores, número de vítimas da Covid-19 até então. O adiamento
da compra de vacinas e consequente atraso no início da imunização, bem como a
estratégia do governo de alcançar a imunidade coletiva pelo contágio, tornou o
luto muito maior.
O Rio de Janeiro foi a primeira cidade a
aderir; há notícias de iniciativas em 17 estados brasileiros. A capital
fluminense transformou em Bosque da Memória a Alameda Sandra Alvim, um corredor
verde de preservação de restinga, no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste
carioca. A área foi adotada formalmente, há três anos, pela arquiteta Isabelle
de Loys, que firmou com a Fundação Parques e Jardins o compromisso de zelar e
recuperar a vegetação nativa de quase um quilômetro de extensão por 70 metros
de largura. Isabelle é a pessoa física com a maior área pública adotada na
cidade.
A transformação da Alameda em espaço de
memória recebeu o aval dos secretários municipais de Meio Ambiente, Eduardo
Cavaliere, e Planejamento Urbano, Washington Fajardo. Ao longo do processo,
Isabelle enfrentou resistência de moradores, de uma igreja evangélica e até de
uma creche. Eles defendiam a abertura de uma rua e vagas de estacionamento na
área. Deu-se ali um microcosmo da disputa entre o Brasil que progride e o que
retrocede em responsabilidade socioambiental, a cara da gestão Jair Bolsonaro.
O município bateu o martelo e, mês que vem, o prefeito Eduardo Paes assinará
decreto tornando o equipamento público permanente.
— O bosque é um espaço de memória e, ao
mesmo tempo, de preservação ambiental. As famílias compram as mudas sob nossa
orientação. A Alameda é o primeiro de três Bosques da Memória previstos para o
Rio. O segundo será instalado em Anchieta, no Parque Gericinó. Estamos em
negociação com o Exército, dono da área, mas 1.500 árvores já foram compradas.
O terceiro será um módulo no Parque Madureira — informou o secretário
Cavaliere.
No Estado do Rio, mais de 68 mil pessoas
morreram em decorrência da Covid-19; na capital, foram quase 35 mil óbitos.
Desde junho, segundo Isabelle, já foram plantadas 178 mudas de ipê-amarelo,
guriri, pau-brasil, pitanga, caju, acerola e amora, entre outras espécies. Mais
de 2 mil pessoas participaram das cerimônias de plantio. Cada família escolheu
uma espécie para doar. As árvores são identificadas com os nomes das vítimas.
Na próxima terça, Dia de Finados, haverá programação cultural e afetiva nos
espaços de convivência do bosque. “É uma forma de transformar o sentimento de
tristeza em gratidão pelos bons momentos vividos com as pessoas que partiram”,
conta Isabelle. São vítimas da tragédia, ora eternizadas por seus amores no que
o Brasil tem de melhor, a natureza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário