Valor Econômico
Reconstrução fiscal do Brasil é desafio
para um novo governo, mas há pelo menos uma proposta na mesa e um debate
internacional em curso
O regime fiscal brasileiro está esfacelado.
Para sua reconstrução, o economista José Roberto Afonso, resgata uma ideia que
chegou a ser proposta na constituinte de 1988 pelo então deputado José Serra:
criar um Código das Finanças Públicas, que reuniria em uma lei complementar
toda a legislação e práticas relacionadas às contas do setor publico, inclusive
a Lei de Responsabilidade Fiscal, que precisaria ser completada e modernizada.
Deve, também, regular o orçamento público,
que é uma tarefa urgente, pois a lei básica é de 1964 e o vazio institucional
levou ao extremo da “privatização do orçamento” com a instituição das “emendas
secretas”.
Deverá, ainda, definir os papéis do Legislativo e do Executivo. Há muito que resolver institucionalmente, na fronteira entre eles, até para cobrar responsabilidades, hoje diluídas.
Será preciso abrigar no Código todos os
dispositivos que se multiplicaram com sucessivas emendas constitucionais. “Não
há nada parecido no resto do mundo e na história brasileira, com a atual
inflação de regras constitucionais, escrevem Afonso e o analista do Senado
Leonardo César Ribeiro em texto publicado na revista do TCU, em junho.
“Uma onda de regras fiscais e
procedimentais invadiu o texto constitucional, aumentando o número de
dispositivos para 177 - em 1988 eram 67 - sem considerar o ADCT (Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias) e o texto das emendas constitucionais.
A última iniciativa foi a “PEC Kamicaze” ou
a “PEC das bondades”, aprovada nesta semana pelo Congresso, que eleva o Auxílio
Brasil de R$ 400 para R$ 600 e estende a caminhoneiros e taxistas um auxílio de
maior valor, dentre outras medidas que duram só até o fim de dezembro. Elas
custam R$ 41,2 bilhões aos cofres públicos, mas o pior não é esse custo e sim a
forma, que revela um ativismo do Legislativo em matéria própria do Executivo.
Para Afonso, essa proliferação sem freios
de emendas constitucionais retrata a “falta de governo” no Brasil.
A edição de um Código de Finanças Públicas
visa, acima de tudo, resgatar a credibilidade fiscal. Afonso é critico
inclusive da lei do teto de gasto. “Não há bala de prata” para solucionar a
desordem criada nas contas públicas, diz ele.
“Considerando o estágio atual de
complexidade e desorganização do arcabouço fiscal brasileiro”, o economista
apresenta uma proposta baseada em três pilares: adoção de um novo Código de
Finanças Públicas, fortalecimento da coordenação intergovernamental da política
fiscal e instituição das revisões periódicas dos gastos.
O Código é mais difícil de ser aprovado e
alterado do que a PEC. É uma lei complementar com um rito especial de
tramitação no Congresso.
Há um século, em 1922, o Brasil adotou o
Código de Contabilidade Pública que pavimentou o caminho para a maioridade do
país na área fiscal. Esse centenário poderia inspirar “inovação e competência
para reconstrução do arcabouço fiscal brasileiro, abalado nos últimos anos por
uma sucessão de equívocos, retrocessos e fracassos”, sugerem os autores.
Em um mundo em guerra, que passa por
transformações sociais, econômicas e culturais, preocupado com os efeitos da
pandemia e alto endividamento público dos países, reorganização das regras
fiscais é uma tendência internacional no campo das finanças públicas. O Brasil
está apto a participar desse esforço.
Em 1922 teve o código, que ordenou uma gama
de procedimentos orçamentários, financeiros, contábeis, patrimoniais no âmbito
federal.
Em 1964, poucos dias antes do golpe
militar, foi aprovada a lei que estabeleceu no país as normas gerais de direito
financeiro. Inovou ao considerar regime de competência para as despesas não
financeiras, que veio a se tornar comum nas economias avançadas muitas décadas
depois.
Em 1988, a nova Constituição dedicou um
capítulo para Finanças Públicas. Em 2001, aprova-se a Lei de Responsabilidade
fiscal (LRF).
Esse breve histórico deveria estimular a
discussão de um “novo e radical processo de reconstrução da governança fiscal
no país”, sugere Afonso. Segundo ele, há certo consenso entre os técnicos nesse
sentido “diante da rápida e grave deterioração que atinge as instituições
fiscais no Brasil”. Aqui, deve-se levar em conta erros que marcam as práticas
fiscais no país, como os que culminaram no impeachment da então presidente
Dilma Rousseff, para resumir em um só evento o desgaste da política fiscal.
É oportuno, para não se dizer imperioso,
revisar esse arcabouço legal com foco na consolidação e na harmonização de um
Código Fiscal. Isto abriria caminho para outras mudanças estruturais, tais como
a criação do Conselho de Gestão Fiscal e a das revisões políticas do gasto
público.
No debate internacional se destacam dois
economistas especializados na área macrofiscal: Vitor Gaspar e Oliver
Blanchard. Ambos apresentaram duas propostas distintas para uma nova governança
fiscal na Europa. Seja ela fundamentada em regras fiscais - modelo europeu - ou
em padrões de governança - modelo neozelandês.
As regras fiscais correspondem a limites
numéricos definidos ex-ante para a dívida, para o gasto etc. Os padrões são
procedimentos e é esse tipo de arcabouço que sustenta o “sofisticado Orçamento
do Bem-Estar da Nova Zelândia”.
Mais do que uma reforma, “é forçoso
promover uma reconstrução da governança fiscal no Brasil considerando as
complexidades do processo orçamentário atual.
A experiência de outros países com Códigos
Fiscais geralmente contém normas voltadas para três objetivos: assegurar
estabilidade macrofiscal de curto prazo e sustentabilidade fiscal de médio
prazo; melhorar a qualidade das informações orçamentárias apresentadas ao
parlamento e ao público; e melhorar eficiência técnica e alocativa dos recursos
públicos.
Todas as normas hoje espalhadas pelo
Constituição, leis complementares e ordinárias, bem como resoluções do Senado e
dispositivos que nunca foram regulamentados, seriam consolidadas em um único e
novo ato, uma lei complementar - única e exclusiva para toda e qualquer matéria
fiscal - com o objetivo de reunir, consolidar e harmonizar, em um só ato, todas
as regras e padrões de governança fiscal.
A reconstrução fiscal do Brasil é um
tremendo desafio para um novo governo. Há uma proposta sobre a mesa e um debate
internacional em curso.
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