sexta-feira, 15 de julho de 2022

Claudia Safatle: A necessária reconstrução fiscal

Valor Econômico

Reconstrução fiscal do Brasil é desafio para um novo governo, mas há pelo menos uma proposta na mesa e um debate internacional em curso

O regime fiscal brasileiro está esfacelado. Para sua reconstrução, o economista José Roberto Afonso, resgata uma ideia que chegou a ser proposta na constituinte de 1988 pelo então deputado José Serra: criar um Código das Finanças Públicas, que reuniria em uma lei complementar toda a legislação e práticas relacionadas às contas do setor publico, inclusive a Lei de Responsabilidade Fiscal, que precisaria ser completada e modernizada.

Deve, também, regular o orçamento público, que é uma tarefa urgente, pois a lei básica é de 1964 e o vazio institucional levou ao extremo da “privatização do orçamento” com a instituição das “emendas secretas”.

Deverá, ainda, definir os papéis do Legislativo e do Executivo. Há muito que resolver institucionalmente, na fronteira entre eles, até para cobrar responsabilidades, hoje diluídas.

Será preciso abrigar no Código todos os dispositivos que se multiplicaram com sucessivas emendas constitucionais. “Não há nada parecido no resto do mundo e na história brasileira, com a atual inflação de regras constitucionais, escrevem Afonso e o analista do Senado Leonardo César Ribeiro em texto publicado na revista do TCU, em junho.

“Uma onda de regras fiscais e procedimentais invadiu o texto constitucional, aumentando o número de dispositivos para 177 - em 1988 eram 67 - sem considerar o ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e o texto das emendas constitucionais.

A última iniciativa foi a “PEC Kamicaze” ou a “PEC das bondades”, aprovada nesta semana pelo Congresso, que eleva o Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 e estende a caminhoneiros e taxistas um auxílio de maior valor, dentre outras medidas que duram só até o fim de dezembro. Elas custam R$ 41,2 bilhões aos cofres públicos, mas o pior não é esse custo e sim a forma, que revela um ativismo do Legislativo em matéria própria do Executivo.

Para Afonso, essa proliferação sem freios de emendas constitucionais retrata a “falta de governo” no Brasil.

A edição de um Código de Finanças Públicas visa, acima de tudo, resgatar a credibilidade fiscal. Afonso é critico inclusive da lei do teto de gasto. “Não há bala de prata” para solucionar a desordem criada nas contas públicas, diz ele.

“Considerando o estágio atual de complexidade e desorganização do arcabouço fiscal brasileiro”, o economista apresenta uma proposta baseada em três pilares: adoção de um novo Código de Finanças Públicas, fortalecimento da coordenação intergovernamental da política fiscal e instituição das revisões periódicas dos gastos.

O Código é mais difícil de ser aprovado e alterado do que a PEC. É uma lei complementar com um rito especial de tramitação no Congresso.

Há um século, em 1922, o Brasil adotou o Código de Contabilidade Pública que pavimentou o caminho para a maioridade do país na área fiscal. Esse centenário poderia inspirar “inovação e competência para reconstrução do arcabouço fiscal brasileiro, abalado nos últimos anos por uma sucessão de equívocos, retrocessos e fracassos”, sugerem os autores.

Em um mundo em guerra, que passa por transformações sociais, econômicas e culturais, preocupado com os efeitos da pandemia e alto endividamento público dos países, reorganização das regras fiscais é uma tendência internacional no campo das finanças públicas. O Brasil está apto a participar desse esforço.

Em 1922 teve o código, que ordenou uma gama de procedimentos orçamentários, financeiros, contábeis, patrimoniais no âmbito federal.

Em 1964, poucos dias antes do golpe militar, foi aprovada a lei que estabeleceu no país as normas gerais de direito financeiro. Inovou ao considerar regime de competência para as despesas não financeiras, que veio a se tornar comum nas economias avançadas muitas décadas depois.

Em 1988, a nova Constituição dedicou um capítulo para Finanças Públicas. Em 2001, aprova-se a Lei de Responsabilidade fiscal (LRF).

Esse breve histórico deveria estimular a discussão de um “novo e radical processo de reconstrução da governança fiscal no país”, sugere Afonso. Segundo ele, há certo consenso entre os técnicos nesse sentido “diante da rápida e grave deterioração que atinge as instituições fiscais no Brasil”. Aqui, deve-se levar em conta erros que marcam as práticas fiscais no país, como os que culminaram no impeachment da então presidente Dilma Rousseff, para resumir em um só evento o desgaste da política fiscal.

É oportuno, para não se dizer imperioso, revisar esse arcabouço legal com foco na consolidação e na harmonização de um Código Fiscal. Isto abriria caminho para outras mudanças estruturais, tais como a criação do Conselho de Gestão Fiscal e a das revisões políticas do gasto público.

No debate internacional se destacam dois economistas especializados na área macrofiscal: Vitor Gaspar e Oliver Blanchard. Ambos apresentaram duas propostas distintas para uma nova governança fiscal na Europa. Seja ela fundamentada em regras fiscais - modelo europeu - ou em padrões de governança - modelo neozelandês.

As regras fiscais correspondem a limites numéricos definidos ex-ante para a dívida, para o gasto etc. Os padrões são procedimentos e é esse tipo de arcabouço que sustenta o “sofisticado Orçamento do Bem-Estar da Nova Zelândia”.

Mais do que uma reforma, “é forçoso promover uma reconstrução da governança fiscal no Brasil considerando as complexidades do processo orçamentário atual.

A experiência de outros países com Códigos Fiscais geralmente contém normas voltadas para três objetivos: assegurar estabilidade macrofiscal de curto prazo e sustentabilidade fiscal de médio prazo; melhorar a qualidade das informações orçamentárias apresentadas ao parlamento e ao público; e melhorar eficiência técnica e alocativa dos recursos públicos.

Todas as normas hoje espalhadas pelo Constituição, leis complementares e ordinárias, bem como resoluções do Senado e dispositivos que nunca foram regulamentados, seriam consolidadas em um único e novo ato, uma lei complementar - única e exclusiva para toda e qualquer matéria fiscal - com o objetivo de reunir, consolidar e harmonizar, em um só ato, todas as regras e padrões de governança fiscal.

A reconstrução fiscal do Brasil é um tremendo desafio para um novo governo. Há uma proposta sobre a mesa e um debate internacional em curso.

 

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