Folha de S. Paulo
Irritometria militar em off é o pico do
servilismo jornalístico
No currículo oculto da formação em jornalismo existe
uma disciplina chamada "Servilismo ao poder político e econômico".
Ensina a prestar serviços privados a quem manda, e a se afastar da produção de
qualquer informação útil ao interesse público ou bem comum. Dentro dessa
disciplina, há um tópico ao qual o jornalismo brasileiro se dedica com muito
gosto e engenho: a irritometria militar.
"Forças
Armadas se irritam com revelações da PF sobre participação de
militares na tentativa de golpe"; "A irritação da cúpula militar com
a investigação da PF sobre o golpe"; "Cresce a irritação das Forças
Armadas com atuação da Polícia
Federal".
"Militares se irritam com prisão
de Cid";
"Entenda o motivo da irritação das Forças Armadas com o caso das
joias de Jair
Bolsonaro"; "Nova crise provocada por Olavo de
Carvalho escancara irritação de militares".
"A irritação das Forças Armadas com o
decano do Supremo"
(o decano era Celso de
Mello, que ousou avisar a militares que, se não fossem depor, seriam
levados, como qualquer cidadão, "debaixo
de vara"); "A irritação dos militares com Alexandre de
Moraes" (o ministro representaria uma "senha da
indignação" entre militares).
É um jornalismo orgulhoso do privilégio dessa fonte tão especial, o general. Por isso não se reconhece como jornalismo de fofoca. Na tipologia das fofocas, existe a fofoca BBB (relato de fatos curiosos sobre atores que só se tornam conhecidos em razão da fofoca); e existe a fofoca sobre a vida privada de autoridades ou celebridades (onde a notoriedade dos atores precede a fofoca).
Na irritometria militar, a fofoca é plantada
pelas próprias autoridades. Em geral, um aviso anônimo em off; com frequência,
simulando posição refletida e deliberada de uma coletividade, uma instituição,
não a opinião de um ou dois indivíduos.
Se a irritabilidade fosse apenas uma
categoria de fofoca política, não teria maiores efeitos. Mas, nesse jornalismo,
ela se alçou a uma categoria de análise política. Um bom irritometrista se
presta a cumprir, portanto, outras funções: mandar mensagens, ameaças, ofertas
de barganha.
Ninguém se torna irritometrista por pura
preguiça, carência, falta de assunto ou vocação servil. Não é serviço gratuito.
Há contrapartidas desejadas. Pode ser promessa de influência, prestígio de
exclusividade, entrada em festas, lista de contatos, cliques. Pode ser
exigência do jornal ou do editor. Pode ser uma condição para manter o emprego.
Melhor que jornalismo declaratório de
opiniões é o jornalismo declaratório do estado de espírito. Melhor que
jornalismo declaratório do estado de espírito é o do estado de espírito em off.
E melhor que o indivíduo irritado em off é a instituição irritada em off.
Para que as Forças Armadas se irritem, basta
qualquer enunciação
pública dos crimes que cometeram no passado e no presente.
Basta qualquer demonstração de sua associação a uma família de delinquência
política serial que assumiu a Presidência e desenhou plano de golpe junto com
eles. Basta o
aparente risco de sanção, pois sanção, de fato, nunca sofreram. No
máximo, a sanção premial: ameaçam o governo e ganham benefícios orçamentários,
remuneratórios e previdenciários (também para as filhas).
A obsessão mórbida com a irritação de
militares tem uma ousadia epistêmica. O irritometrista se julga capaz não só de
identificar a irritação, mas de medi-la. É capaz de perceber quando a irritação
se mantém estável, quando cresceu ou regrediu. Uma ousadia preguiçosa, pois
sequer se preocupa em reportar outro estado de espírito. Queríamos também saber
quando militares estão felizes, quando se regozijam. Se na tortura ou na
sinecura.
Tem também uma dimensão moral. Não é qualquer
cidadão ou instituição que goza do luxo desse cuidado jornalístico. Importante
saber com qual estado de espírito o jornalismo se preocupa, e qual ignora.
Quando Lula afirmou
não querer "remoer o passado", por que os irritometristas não foram
lá perguntar o que sentiam os familiares de vítimas da brutalidade militar? Seu
irritômetro só quer saber de vestir farda?
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
2 comentários:
Excelente! O colunista deu um coice nalguns colegas, como Míriam Leitão e Denis Rosenfield, que, com alguma frequência, se apresentam como bem informados sobre as opiniões dos altos oficiais militares, mas em parte funcionam ou atuam como porta-vozes deste pessoal.
Pode ser.
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