terça-feira, 2 de abril de 2024

Carlos Andreazza - Supremo Tribunal Universal

O Globo

O Supremo Tribunal Federal — Poder onipresente — mudará o alcance do foro por prerrogativa de função. Previsível. A ver somente qual será o placar. São dois julgamentos. Um dos quais com 5 a 0 no escore, tudo muito ligeiro, vista afinal pedida por Luís Roberto Barroso. Questão de tempo. Já encaminhado o arranjo, consistente com o espírito do tempo, por abrangência amplíssima. Universal — diria o maledicente. Ao tribunal ubíquo, o alcance total. Coerente.

Por que a mudança?

Terão foro “privilegiado”, para privilégio sempre dos julgadores, aqueles cujos crimes em foco forem associados ao cargo, independentemente de estarem no cargo. O Supremo anabolizado se expande, o cínico diria que se ajustando formalmente à prática, seis anos depois de haver estabelecido jurisprudência restritiva mais próxima do que se esperaria de uma República: foro especial para quem responde por crimes cometidos no exercício do cargo e relacionados à função. (Concluído o mandato, os processos endereçados à instância competente.)

Para ser justo — e dar razão ao cínico: a regra ainda vigente sempre foi banalmente descumprida pelo STF, que assim desrespeita e desvaloriza o STF, ninguém mais que o próprio STF; como quando o tribunal ordenou busca e apreensão contra sujeito que ofendera o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma. O caso Marielle Franco, sendo Chiquinho Brazão vereador quando dos assassinatos, é outro que põe em xeque a designação do Supremo como foro.

Por que a mudança? Por que agora?

A dúvida ensejada pelo “agora” — por que agora? — não é banal. Corte constitucional volúvel, percebida como ao sabor dos ventos de grupos de pressão, é Corte constitucional que, desguarnecida para oportunismos influentes, trai a impessoalidade e o comedimento, difunde a insegurança e alimenta as desconfianças contra si. Supremo de jurisprudência cambiante, revirada de Copa do Mundo em Copa do Mundo, terá sobre si — acusa o maledicente — a suspeita do casuísmo; da regra adaptada para beneficiar um ou prejudicar outro.

(Jair Bolsonaro decerto não gostará da mudança. Né? Ficaria ruim para ele. E para Arthur Lira? Para Davi Alcolumbre? Ciro Nogueira? Hein? Para os que transitam bem pelos convescotes de Brasília? Ficar-lhes-ia ruim? Ou apreciariam? Hum.)

A forma conta. O Supremo a mexer em jurisprudência sensível por meio do plenário virtual, votos apenas publicados, privada a sociedade do debate sobre as razões do tribunal para alterar entendimento só seis anos após a fixação de tese razoável. Seria desejável uma discussão a que dar — poder dar — publicidade. E não esses votos postos enquanto o coelhinho da Páscoa escondia os ovos.

Por que mudar? O que mudou?

Há novos ministros. A composição dos 11 foi modificada. E daí? Que argumento é esse? Corte constitucional, impessoalidade por natureza, não é Parlamento, cuja formação política circunstancial — a expressar a democracia representativa — poderá pender para um lado e justificará-legitimará reformas legislativas estruturais em função da força ora preponderante. Corte constitucional é o locus do comedimento, do conservadorismo na guarda de decisões precedentes referenciais. Se viciada em proatividade, perderá a mão cedo ou tarde.

(A propósito de mão perdida. Havia os que diziam, sobre o Supremo onipresente, investigador e acusador, que o STF de exceção — condição derivada de um estado de vigília permanente pela democracia golpeada — deixaria de existir e voltaria ao leito normal de suas atribuições quando finalmente houvesse um procurador-geral da República, superadas as paralisias de Augusto Aras. Não voltou. O gênio não voltará mais à lâmpada — repito.)

Corte constitucional não é Parlamento — bom lembrar. Para que não se perca que a deliberação sobre alcance de foro por prerrogativa de função caberia (ainda cabe) ao Congresso. E que o Supremo, mais uma vez, decidirá sobre matéria legislativa. Normal. Já vai normalizado que o iluminista STF, identificando omissões do Parlamento, pode preencher as lacunas conforme suas luzes; pode — a partir do julgamento de um habeas corpus — rever regra já produto de um seu arreganho legislador.

E assim vai o Brasil, unidos cínico e maledicente: o Supremo Tribunal Federal, Poder onipresente, inspirado na aventura dos inquéritos xandônicos universais, e para melhor servi-los, comunicando à sociedade — via plenário virtual — que sua competência será aquela que os ministros desejarem. Em nome da democracia. A Corte constitucional brasileira julga o que quiser — a nova jurisprudência. Se reclamar, Bolsonaro volta.

 

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