O Globo
O Supremo Tribunal Federal — Poder
onipresente — mudará o alcance do foro por prerrogativa de função. Previsível.
A ver somente qual será o placar. São dois julgamentos. Um dos quais com 5 a 0
no escore, tudo muito ligeiro, vista afinal pedida por Luís Roberto Barroso.
Questão de tempo. Já encaminhado o arranjo, consistente com o espírito do
tempo, por abrangência amplíssima. Universal — diria o maledicente. Ao tribunal
ubíquo, o alcance total. Coerente.
Por que a mudança?
Terão foro “privilegiado”, para privilégio sempre dos julgadores, aqueles cujos crimes em foco forem associados ao cargo, independentemente de estarem no cargo. O Supremo anabolizado se expande, o cínico diria que se ajustando formalmente à prática, seis anos depois de haver estabelecido jurisprudência restritiva mais próxima do que se esperaria de uma República: foro especial para quem responde por crimes cometidos no exercício do cargo e relacionados à função. (Concluído o mandato, os processos endereçados à instância competente.)
Para ser justo — e dar razão ao cínico: a
regra ainda vigente sempre foi banalmente descumprida pelo STF, que assim
desrespeita e desvaloriza o STF, ninguém mais que o próprio STF; como quando o
tribunal ordenou busca e apreensão contra sujeito que ofendera o ministro
Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma. O caso Marielle Franco, sendo
Chiquinho Brazão vereador quando dos assassinatos, é outro que põe em xeque a
designação do Supremo como foro.
Por que a mudança? Por que agora?
A dúvida ensejada pelo “agora” — por que
agora? — não é banal. Corte constitucional volúvel, percebida como ao sabor dos
ventos de grupos de pressão, é Corte constitucional que, desguarnecida para
oportunismos influentes, trai a impessoalidade e o comedimento, difunde a
insegurança e alimenta as desconfianças contra si. Supremo de jurisprudência
cambiante, revirada de Copa do Mundo em Copa do Mundo, terá sobre si — acusa o
maledicente — a suspeita do casuísmo; da regra adaptada para beneficiar um ou
prejudicar outro.
(Jair Bolsonaro decerto não gostará da
mudança. Né? Ficaria ruim para ele. E para Arthur Lira? Para Davi Alcolumbre?
Ciro Nogueira? Hein? Para os que transitam bem pelos convescotes de Brasília?
Ficar-lhes-ia ruim? Ou apreciariam? Hum.)
A forma conta. O Supremo a mexer em
jurisprudência sensível por meio do plenário virtual, votos apenas publicados,
privada a sociedade do debate sobre as razões do tribunal para alterar
entendimento só seis anos após a fixação de tese razoável. Seria desejável uma
discussão a que dar — poder dar — publicidade. E não esses votos postos
enquanto o coelhinho da Páscoa escondia os ovos.
Por que mudar? O que mudou?
Há novos ministros. A composição dos 11 foi
modificada. E daí? Que argumento é esse? Corte constitucional, impessoalidade
por natureza, não é Parlamento, cuja formação política circunstancial — a
expressar a democracia representativa — poderá pender para um lado e
justificará-legitimará reformas legislativas estruturais em função da força ora
preponderante. Corte constitucional é o locus do comedimento, do
conservadorismo na guarda de decisões precedentes referenciais. Se viciada em
proatividade, perderá a mão cedo ou tarde.
(A propósito de mão perdida. Havia os que
diziam, sobre o Supremo onipresente, investigador e acusador, que o STF de
exceção — condição derivada de um estado de vigília permanente pela democracia
golpeada — deixaria de existir e voltaria ao leito normal de suas atribuições
quando finalmente houvesse um procurador-geral da República, superadas as
paralisias de Augusto Aras. Não voltou. O gênio não voltará mais à lâmpada —
repito.)
Corte constitucional não é Parlamento — bom
lembrar. Para que não se perca que a deliberação sobre alcance de foro por
prerrogativa de função caberia (ainda cabe) ao Congresso. E que o Supremo, mais
uma vez, decidirá sobre matéria legislativa. Normal. Já vai normalizado que o
iluminista STF, identificando omissões do Parlamento, pode preencher as lacunas
conforme suas luzes; pode — a partir do julgamento de um habeas corpus —
rever regra já produto de um seu arreganho legislador.
E assim vai o Brasil, unidos cínico e
maledicente: o Supremo Tribunal Federal, Poder onipresente, inspirado na
aventura dos inquéritos xandônicos universais, e para melhor servi-los,
comunicando à sociedade — via plenário virtual — que sua competência será
aquela que os ministros desejarem. Em nome da democracia. A Corte
constitucional brasileira julga o que quiser — a nova jurisprudência. Se
reclamar, Bolsonaro volta.
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