terça-feira, 2 de abril de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Milícias ocupam o Estado

Valor Econômico

Práticas nada republicanas de suspeitos da morte de Marielle revelam corrosão dos princípios que deveriam comandar as ações dos agentes que ocupam o Estado

As práticas nada republicanas dos irmãos Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa foram alcançadas pelas investigações acuradas da Polícia Federal. As informações obtidas revelam a corrosão dos princípios e instituições que deveriam comandar as ações dos agentes que ocupam o Estado.

A República e a democracia dobram os joelhos, submetidas aos conflitos e contubérnios entre milicianos, traficantes e ocupantes do Estado que o corroem por dentro como parasitas. Esse achincalhe aos princípios que deveriam governar as ações do Estado de Direito moderno abriga em seus subterrâneos as forças da cobiça, ou como diriam Freud e Keynes, os impulsos do “amor ao dinheiro”. (Keynes prezava como poucos a liberdade política garantida pelo Estado Moderno e almejava o aperfeiçoamento do indivíduo. Era, no entanto, crítico feroz e implacável do individualismo utilitarista e do “amor ao dinheiro”).

Observador das turbulências que assolaram a sociedade inglesa no século XVII, o pensador liberal Thomas Hobbes imaginou que o terror disseminado pelos bandos privados na busca de cobiçadas riquezas só poderia ser contido pela concentração do poder e da força no Leviatã.

Hobbes surpreende a sociedade dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes, é permanente a possibilidade de o Estado, o Deus Mortal, ser destruído em uma crise desencadeada pela invasão de ambições “particularistas”.

O Leviatã é uma criatura engendrada pelos indivíduos livres, atormentados, porém, pela cobiça e pelo medo, sempre prestes a lançar a sociedade nos torvelinhos da morte e da destruição. É o medo que os obriga a abrir mão de suas liberdades sem peias para concentrar o poder na soberania do Estado.

Hobbes considerava a polícia o órgão vital do Estado moderno, a encarnação de sua essência. Mas a segurança do cidadão estaria garantida apenas mediante a imposição de controles e limites à função de polícia, determinados pela lei. A função policial deve ser exercida com vigor para conter impulsos destrutivos dos indivíduos, mas submetida às restrições necessárias para impedir que a soberania do Estado se transforme em arbítrio, ou seja, no exercício de um poder privado pela burocracia estatal encarregada de vigiar e punir.

Nas repúblicas modernas, se é que temos aqui algo parecido com isso, figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública, à constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei.

O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no exercício do monopólio da violência, as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o outro. Não há como pensar a sobrevivência da sociedade dos indivíduos-cidadãos sem imaginar a presença do poder repressivo do Estado. O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel.

Os códigos da cidadania moderna foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista e reacionário dos que se consideravam com mais direitos e poderes. Esses, no Brasil, invariavelmente imaginam uma sociedade sem a presença de um Estado democrático e forte, capaz de intimidar aqueles que pretendam se impor por meio da intimidação.

Descumprimento do dever de punir pelo ente público lança a sociedade no desamparo e na violência sem quartel

O contrato social que dá origem ao Leviatã está contaminado pelos anseios do desejo e pelos temores da violência. O medo é o medo do outro. Hobbes nega o estado de natureza idílico como o concebeu Locke, o bom selvagem, tal como também o idealizou Rousseau. Os homens só convivem pacificamente na sociedade em que o Estado está consolidado, quando os egoísmos da sociedade civil já estão pacificados pelas leis soberanas.

“Uma vez que a Condição Humana é a da Guerra de uns contra os outros, cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim, perdurando esse Direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá haver segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver durante todo o tempo que a Natureza permitiu que vivesse.

Hobbes recusa a perenidade do contrato social e admite que o poder soberano, uma vez estabelecido, estará sempre ameaçado pelos conflitos da sociedade civil. Uma visão pessimista, nascida dos conflitos que acompanharam a sociedade moderna em formação.

No livro “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, o economista Joseph Schumpeter manifesta dúvidas a respeito do sucesso das sociedades capitalistas na gestão da coisa pública. “Acima de tudo os eleitorados e os parlamentares devem ter um nível intelectual e moral muito elevado para poderem resistir aos oferecimentos dos trapaceiros e farsantes ou de outros homens que, não sendo uma coisa nem outra, vão se conduzir da mesma maneira”.

Nos discursos e manifestações dos irmãos Brazão sobressaem adesões a um moralismo tosco e hipócrita. Nada é mais imoral nas sociedades modernas do que o moralismo dos beldroegas. O filósofo Domenico Losurdo considera inaceitável esse comportamento: “Os protestos moralistas não são apenas errôneos, mas revelam apego malsão à própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade”. Invocar a própria virtude, a honestidade ou os bons propósitos para contestar a impessoalidade e o “formalismo” da lei é a maior corrupção praticada contra a vida democrática. Montesquieu dizia que há insanidade na substituição da força da lei pela presunção de virtude auto alegada.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

3 comentários:

marcos disse...

Cínico.

MAM

Antonio Ramos Filho disse...

Exatamente o que se passa hoje. Grassa a falsa moralidade da boca e atos de muitos que foram eleitos como representantes do povo, ou investidos de autoridade em qualquer esfera de governo e Poder. E pelo que se vê e ouve no noticiário, muita contaminação ou aparelhamento de Órgãos e Instituições estatais, quando não dos agentes públicos à frente deles.

ADEMAR AMANCIO disse...

Basta uma moralidade elevada pra resistir-se aos trapaceiros,o intelecto não ajuda muita coisa.