Jornal da USP
Não é fácil sair do estado
de inércia sob estruturas arcaicas que ligam o Brasil ao passado. Donde emerge
a questão: que tipos de reformas se fazem necessárias para fazer avançar o País
em sua trilha civilizatória? As indicações para se obter um estágio de
modernização, de maneira quase consensual, assinalam para as necessidades de
reformas do sistema político-partidário-eleitoral, da estrutura do Estado com a
respectiva redefinição de atribuições e melhor divisão de competências entre os
três poderes, do sistema tributário-fiscal e da previdência, reformas
consideradas como prioritárias para redimensionar o perfil institucional do
País.
Mas isso não é coisa muito vaga, um devaneio, uma chegada ao topo da montanha sem enfrentar o percurso vertiginoso do caminho? Sem dúvida, parece sonho. E como iniciar esse trajeto? Ora, fazendo coisas como o que se fez no último dia 6, ou seja, usando a ferramenta de poder do eleitor, o voto, para mudar a moldura da parede. Por isso, o processo eleitoral é importante. Quanto mais eleições, melhor para a democracia.
Urge mudar a fisionomia
cultural do País. Tarefa complexa. De início, uma breve explicação. O sociólogo
inglês Thomas Humphrey Marshall, em sua obra, diz que o desenvolvimento da
cidadania depende de três elementos, surgidos e afirmados cada qual em um século
diferente: os direitos civis teriam se formado no século 18; os direitos
políticos, no século 19; e os direitos sociais, no século 20. A pirâmide,
portanto, tem no topo os direitos civis, o direito à livre expressão, o direito
à propriedade, o direito à associação etc.
No Brasil, ocorreu uma
inversão dessas categorias. Getúlio Vargas, na década de 1930, começou a
lapidar a pirâmide com os direitos sociais, a partir da febre de criação de
sindicatos. No fundo, queria atrair a base de trabalhadores para seu intento
ditatorial. Depois, garantiu ao País os direitos políticos, com a agenda
eleitoral, o voto. Por último, vieram os direitos civis, aqueles que iniciavam
a tríade inglesa da cidadania. A pirâmide varguista cunhou o conceito de estadania,
na expressão do historiador José Murilo de Carvalho. A cidadania sob o escudo
do Estado.
Com a estadania,
descortina-se a paisagem do Estado protetor e provedor, que, na simbologia
usada pelo escritor e embaixador J. O. Meira Penna, em sua obra Em
Berço Esplêndido, ganha o nome de “vaca leiteira”, com as tetas que
oferecem leite aos brasileiros. Acostumamo-nos a buscar a vaca, na crença de
que ela tem a obrigação de saciar a sede dos nativos. A mamata se espraia. E
finca em todos os espaços do território as raízes da cultura paternalista.
Mudar essa cultura é tarefa
que demanda tempo, muito tempo. Ao fundo, esculpida no inconsciente coletivo a
imagem de que o Estado tem a obrigação de nos salvar. Ora, essa é a barreira
que impede avanços rápidos em nossa caminhada. E que atrapalha a criação de
novos padrões de organização social e produtiva. Mesmo assim, por mais bem
feitas, eventuais reformas não conseguirão gerar resultados suficientes para
alterar, de modo profundo, a fisionomia cultural do País. Como se induz, há de
se considerar o alto grau de canibalização de nossa cultura política. Reformas,
mesmo as mais profundas, tendem a cair na garganta da homogeneização cultural.
Com o tempo, perdem vigor, criam anticorpos e, após determinado ciclo, geram
vírus (incluindo os jabutis) que as desfiguram por completo. Por trás dessa
questão, há outra: as elites costumam promover reformas com a intenção de
ajustá-las mais às suas necessidades do que às demandas sociais.
A reforma do sistema
político-eleitoral-partidário poderá, por exemplo, melhorar a
representatividade dos agentes, qualificando os quadros, redefinindo a
proporcionalidade entre os Estados, de acordo com o princípio das densidades
eleitorais; podem estabelecer um tipo de voto que traduza, com fidelidade, as
reivindicações das comunidades; aperfeiçoar o perfil partidário, por meio de
normas mais rigorosas para criação de partidos e formação de corpos
doutrinários mais densos ou clarificar as campanhas, com disposições sobre
financiamentos.
Tudo isso terá sua
importância, mas não seriam suficientes para resolver questões de fundo. O
ajuste nas regras do jogo não significa necessariamente melhoria da qualidade
dos parceiros. O eleitor, em qualquer sistema ou sob qualquer regra, continuará
a ser manipulado. A incultura política de imensos contingentes continuará dando
espaço a uma categoria de representantes desqualificados.
Significa intuir que a
modernização do País, vista pelo prisma das chamadas reformas clássicas,
cobrirá apenas parcelas da sociedade, sistemas e setores da burocracia estatal,
e terá, como contrapeso, a marginalidade de cordões periféricos, o chamado território
dos excluídos dos benefícios da civilização.
Continuaremos a ter um
Brasil franksteiniano, ilhas de modernidade e racionalidade com mangues de
ignorância e miséria. Ou seja, reformas feitas por cima apenas protelarão o
desenvolvimento integral e autossustentado do País.
Por último, sinaliza-se uma pista: a reforma da educação básica. Urge olhar para a escola pública deteriorada. Milhões de brasileiros permanecem fora do sistema educacional. Medidas paliativas, como as de combate à fome e à miséria (Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida) e congêneres, dentro de uma visão meramente assistencialista, podem ter méritos, no curto prazo, minorando o desespero que se alastra em alguns espaços. Jamais, porém, quebrarão os elos que prendem o País ao passado e que escancaram traços de uma comunidade que participa da fila dos cultivadores da mamata. Programas utilitaristas, de aplicação imediata, ou reformas de elite, para atender o clima das circunstâncias e a gritaria dos contrários, são apenas reboco nas paredes da crise.
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