quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Sinais ambíguos de Lula trazem prejuízo à economia

O Globo

Para resgatar credibilidade, presidente deve apoiar o plano de controle de gastos da equipe econômica

São ambíguos os sinais relativos à política econômica que emanam do Planalto. De um lado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a falar, em entrevista à rádio O Povo/CBN, de Fortaleza, na proposta demagógica de elevar o patamar de isenção de Imposto de Renda até R$ 5 mil mensais — nível que alcançaria a classe média e deixaria quase 70% dos possíveis contribuintes livres de imposto. De outro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que apresentará uma proposta para controle de gastos logo depois da eleição municipal e deu a entender que Lula está disposto a apoiá-la se levar à reconquista do grau de investimento para papéis da dívida brasileira.

A elevação da nota de crédito do Brasil pela agência Moody’s teve efeito aparentemente positivo sobre Lula, que vislumbrou um caminho para reeditar uma das maiores conquistas de seus primeiros governos. Por isso, num momento em que o governo vem perdendo credibilidade diante do mercado financeiro e dos agentes econômicos em razão da percepção de descompromisso com o equilíbrio fiscal, é fundamental que ele desfaça qualquer sombra de ambiguidade nos sinais que transmite: deve apoiar de modo enfático os planos de controle de gastos apresentados por Haddad e esquecer o populismo sem base na realidade que cerca a revisão do Imposto de Renda.

Pelas informações disponíveis, o plano de Haddad deverá prever cortes nos supersalários do funcionalismo — pagos acima do teto constitucional —, o fim da indexação ao salário mínimo do Benefício de Prestação Continuada (BPC) — concedido a idosos de baixa renda ou a deficientes — e o aumento na idade de concessão, além de mudança de critérios de acesso ao abono salarial. Tais medidas evitariam o crescimento desproporcional dos gastos, sem prejudicar o rendimento dos mais necessitados, já que os benefícios seriam corrigidos pela inflação. Aliadas ao pente-fino noutros benefícios, como seguro-desemprego, seguro defeso e auxílio-doença, trariam um horizonte mais crível para o equilíbrio fiscal e contribuiriam para resgatar algo da credibilidade perdida.

Quanto à revisão do Imposto de Renda, é meritória a iniciativa de tornar a cobrança mais progressiva e mais justa. Mas isso não deve ser feito isentando boa parte da classe média e imaginando que o buraco aberto nas contas públicas — estimado em até R$ 60 bilhões — poderá ser coberto com abstrações genéricas e populistas como “taxar milionários” ou os “especuladores”.

Dezenas de distorções e isenções de eficácia duvidosa beneficiam grupos específicos. As renúncias tributárias no Orçamento de 2025 somam R$ 544 bilhões, ou 4,4% do PIB. É fundamental revê-las para apresentar um plano consistente ao Congresso. Mas, com a reforma tributária dos impostos sobre consumo em curso, à espera de regulamentação ainda neste ano, a tentativa de criar de improviso mais uma isenção sobre a renda só contribuirá para semear confusão. Essa é uma discussão que precisa amadurecer com base em estudos e análises fundamentados, não no mero desejo de Lula.

O presidente faria bem se entendesse algo simples, que já está claro há muito tempo para sua própria equipe econômica: o mais crítico para o êxito de seu governo nessa área é um plano exequível de controle de gastos e ajuste fiscal, única medida capaz de resgatar a credibilidade do próprio Lula.

Extinção das penas pelo massacre do Carandiru é inadmissível

O Globo

Em razão da lentidão da Justiça, até hoje nenhum dos 74 policiais condenados ficou preso um dia sequer

Passados 32 anos da rebelião sufocada pela PM no presídio do Carandiru, em São Paulo, o caso ainda não está encerrado na Justiça, e nenhum dos 74 policiais militares condenados pelo massacre de 77 presos cumpriu um dia sequer da pena. Exemplo eloquente da lentidão do Judiciário, o processo enfrenta mais um percalço com a decisão tomada pela 4ª Câmara do Direito Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) paulista de extinguir as penas dos policiais — distribuídas entre 48 e 624 anos de prisão — sem ouvir o Ministério Público (MP) de São Paulo. O MP, com toda razão, recorreu contra a sentença.

No centro da discussão está o decreto de indulto de Natal editado pelo ainda presidente Jair Bolsonaro no fim do seu governo, em 2022. O texto do decreto foi redigido sob medida para beneficiar os policiais condenados ao estender o indulto a condenados por “fato praticado há mais de 30 anos”, quando o crime “não era considerado hediondo no momento de sua prática”.

A legislação proíbe que o presidente indulte crimes hediondos. Há mais de três décadas, o homicídio qualificado não era considerado hediondo. Isso só viria a ocorrer dois anos depois do massacre— a motivação, em parte, foi a barbárie cometida pelos policiais que entraram no presídio fortemente armados, levando cachorros adestrados. Foram mortos 111 presos. As evidências comprovaram a execução de 77 pelos policiais. Os presos estavam sob a custódia do Estado, depois de julgados e condenados, e foram executados por agentes públicos que deveriam dar o exemplo no cumprimento da lei. A dimensão e as características do crime desde o primeiro momento o qualificavam como uma barbárie inaceitável num Estado Democrático de Direito.

Depois de muita protelação, os réus foram enfim julgados e condenados em 2013, mas a sentença foi anulada na segunda instância. Só em 2022 o Supremo Tribunal Federal (STF) a confirmou. Em seguida veio o decreto de Bolsonaro . Ele era tão absurdo que levou o então procurador-geral da República, Augusto Aras, conhecido pelo alinhamento com o Planalto, a recorrer ao Supremo. Em janeiro de 2023, a ministra Rosa Weber suspendeu de forma liminar o trecho do indulto que beneficiava os policiais. O MP ajuizou uma ação de arguição de inconstitucionalidade, que começou a ser julgada em abril de 2023 pelo Órgão Especial do TJ. Mas a Corte resolveu esperar pelo julgamento do processo no STF. Em junho passado, o ministro Luiz Fux, relator do processo, decidiu que a Justiça de São Paulo poderia continuar seu julgamento. O resultado agora foi a extinção das penas.

Além de a Constituição impedir indultos em crimes hediondos, entidades de defesa dos direitos humanos ressaltaram que indulto de Natal não pode beneficiar um grupo específico, como os policiais. O decreto de Bolsonaro desconsidera a brutalidade com que os presos foram mortos. Um novo pronunciamento das Cortes superiores reforçaria os direitos constitucionais e contribuiria para desfazer a imagem de ineficácia da Justiça brasileira na punição aos criminosos.

Com rigor fiscal, governo colherá trunfos políticos e econômicos

Valor Econômico

Haddad terá de convencer o presidente e o núcleo palaciano de que essa é a coisa certa a fazer, mas não é certo que consiga

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apontou a saída para o rápido endividamento fiscal: sem conter as despesas o novo regime não para em pé. A descrença nas regras fiscais levou os investidores a apostarem em juros futuros cada vez mais - até 13,5% diante de uma inflação de 4,5%. Há crescimento robusto, mas à custa de estímulos que tornam a inflação mais resistente, o real mais depreciado e o déficit fiscal bem maior do que o previsto no início do governo Lula. “Temos agora que resolver a reestruturação da despesa. Isso vem na frente de qualquer coisa”, disse Haddad (Folha de S. Paulo, ontem), em atitude promissora que visa a retirar o regime fiscal da zona de incredulidade.

A ordem dos fatores foi alterada. A preparação de uma mal planejada e inconveniente isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil foi adiada até segunda ordem, provavelmente para 2025. A insistência na mudança pelo presidente Lula provocou nova rodada de desconfiança dos mercados sobre a solidez do regime fiscal e novo disparo dos juros e do dólar. Haddad, com bom senso, e sem entrar no mérito da proposta - para a qual sua equipe estuda um leque de alternativas -, parece ter convencido o presidente de que a política econômica tem uma outra sequência necessária de passos. Antes de mexer na tributação da renda, é necessário que a tributação do consumo, via reforma tributária, nas mãos do Senado, seja aprovada.

Tudo indica que Haddad percebeu o que a burocracia do Planalto, e Lula com ela, não se deram conta, ou desdenham. Os gastos obrigatórios estão crescendo muito além do previsto, como já fora alertado pela Fazenda e pelo Planejamento, e o governo pode entrar em um apagão em 2027, ou antes. Se a perspectiva política do presidente é a de se reeleger, de nada servirá legar a si próprio uma bomba fiscal - aliás, duas. O próximo governo estreará com a obrigação de os precatórios voltarem a contar para a meta fiscal, uma carga de mais de R$ 40 bilhões anuais que hoje está fora dela. A trajetória fiscal, como os mercados sinalizam, é insustentável, embora o limiar da insolvência esteja ainda a uma boa distância.

Em entrevista, Haddad sugeriu que o presidente “conhece o contexto e está atento” ao que a equipe econômica anda elaborando para revisão de gastos. De forma imediata, a correção das despesas com o Benefício de Prestação Continuada, o abono salarial e o seguro-desemprego, que acompanham a variação do salário mínimo acima da inflação, pressiona o regime fiscal e tende a inviabilizar a obtenção da meta. Como são despesas obrigatórias, empurram as discricionárias, onde entram custeio e investimentos, para uma contração absoluta ao longo do tempo, com o potencial de paralisar a máquina federal.

Essa é a uma das maiores inconsistências do novo regime, mas não a única. É, porém, a mais fácil de ser resolvida, porque basta uma decisão política para modificá-la. Não há impedimento constitucional para desvincular essas despesas do salário mínimo, e muito menos para readequá-las a um arranjo melhor para as contas públicas. Há uma sobreposição ineficaz e custosa de mecanismos destinados a amparar o desempregado, em especial o seguro, que, paradoxalmente, tanto mais cresce quanto maior é o nível de ocupação.

A dificuldade política é gigantesca em relação à mudança na maior despesa da União, a com aposentadorias e pensões, cujo piso, vinculado ao salário mínimo, tem apoio constitucional, e removê-la poderia levar a uma batalha judicial de anos, com perspectiva bastante duvidosa de vitória para a União. Seria mais fácil retirar a correção real do salário mínimo pela evolução do PIB de dois anos anteriores, mas essa parece ser uma marca registrada dos governos Lula da qual o presidente não demonstra interesse em abdicar, apesar de ser um dos fatores mais relevantes para o avanço dos gastos obrigatórios.

Outra questão difícil de resolver, mas que precisa ser equacionada, pois contradiz a lógica do regime fiscal, é a indexação dos gastos de saúde e educação à evolução das receitas líquidas - isto é, quanto maior a arrecadação, mais crescerão as despesas com esses setores. A vinculação também é constitucional, e modificá-la exigirá grande costura política, supondo que o presidente Lula queira fazer esse esforço, algo que até agora não demonstrou.

O ministro da Fazenda não desistirá de buscar mais receitas para a União, mas a ênfase agora, pelo menos na intenção, é conter despesas, o flanco vulnerável do ajuste fiscal. Haddad reconheceu como legítima a preocupação com o avanço das despesas, e a intenção de revisar os gastos ganhou prioridade e vai na direção certa. Se de alguma forma as despesas obrigatórias forem desaceleradas, as contas públicas poderão apresentar superávit primário em curto prazo, como o governo previu quando o novo regime fiscal foi concebido. Haddad terá de convencer o presidente e o núcleo palaciano de que essa é a coisa certa a fazer, e que as recompensas - queda dos juros, desafogo fiscal, maior crescimento e a obtenção do grau de investimento pelas agências de rating da dívida - permitirão ao governo colher trunfos políticos e econômicos. Não é certo que consiga.

Política econômica crível demanda mais que palavras

Folha de S. Paulo

Haddad prega medidas necessárias para conter gastos, mas Lula faz o oposto; temores podem elevar dólar, inflação e juros

É notável o equilibrismo do ministro Fernando Haddad, que, em entrevista à Folha, apresenta um diagnóstico razoável do cenário econômico e prega as medidas necessárias para sustar a escalada dos gastos públicos, mas sem melindrar nem expor o chefe de governo, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que diz e faz o oposto.

O titular da Fazenda se esforça para vender uma leitura mais otimista da conjuntura atual, o que é até certo ponto compreensível —desde, claro, que ele não creia piamente no que afirma.

Haddad celebra a taxa surpreendente de 3% de crescimento do Produto Interno Bruto e a atribui a méritos insondáveis da administração petista, não ao aumento desmesurado da despesa do Tesouro. Nesse caso, conviria explicar por que o PIB cresceu os mesmos 3% em 2022, sob a farra eleitoral de Jair Bolsonaro (PL).

Mais ainda, por que o Banco Central teve de iniciar um novo ciclo de alta dos juros, já elevadíssimos, em razão do expansionismo orçamentário que alimenta a inflação e a dívida pública.

Tampouco é prudente amparar-se na tese de que a meta fiscal deste ano está sendo cumprida. O objetivo anunciado era déficit zero, e o governo busca de fato um déficit na casa dos R$ 28 bilhões, no limite da margem permitida por lei —e, ainda assim, tirando uma série de gastos da conta.

De melhor, Haddad admite sem meias palavras que o programa de ajuste das contas públicas não funcionará sem um controle da expansão de grandes despesas, aí citadas educação, saúde e as decorrentes dos reajustes do salário mínimo acima da inflação.

Embora trate-se do óbvio para quem tem acesso aos dados e não faz parte das hostes petistas e assemelhadas, o reconhecimento por parte do ministro preserva a sensatez no debate. Para além disso, tudo ainda é incerto.

Acredite quem quiser que Lula, carente de popularidade e com a reeleição na mira dentro de dois anos, estará disposto a rever regras criadas por seu próprio governo. Se vier a fazê-lo, será somente sob ameaça de uma crise financeira grave e imediata.

Haddad relata que a necessidade de conter gastos é tema frequente e prioritário de suas conversas com o presidente da República. Resta claro, no entanto, que as tentativas de convencimento em nada resultaram até o momento —embora expectativas de que algo será feito sejam semeadas sempre que há turbulências no mercado, como agora.

Sem providências palpáveis contra a elevação contínua da dívida pública, meras palavras tendem a ter eficácia decrescente ante temores que levam à alta das cotações do dólar e dificultam ainda mais a gestão da economia.

O ministro tem assumido com habilidade o papel de defensor solitário da responsabilidade orçamentária em Brasília, mas é um quadro do partido que segue fielmente a liderança de Lula. É do Palácio do Planalto, portanto, que precisam vir mostras de endosso às diretrizes da Fazenda.

SP tem Orçamento recorde e atraso de gestão a superar

Folha de S. Paulo

Em 2025, prefeito deve ter finanças mais favoráveis que as de antecessores; margem para investimentos ainda é estreita

Por muitos anos, especialmente no início deste século, a gestão da prefeitura paulistana parecia inviabilizada pela penúria orçamentária.

A dívida do município, impulsionada sob Paulo Maluf (1993-96) e Celso Pitta (1997-2000), chegou a corresponder a mais de 200% da receita anual, segundo os critérios da Lei de Responsabilidade Fiscal, que impõe teto de 120% para o indicador. Sem crédito nem boa capacidade de investimento, a maior cidade do país derrubava reputações de prefeitos.

A situação só começou a mudar a partir de 2016, quando o governo federal, principal credor, promoveu mais uma renegociação de dívidas dos entes federativos. Outro passo decisivo foi dado em 2022, com o acordo para a devolução do Aeroporto Campo de Marte à União em troca de uma indenização bilionária.

O cofre paulistano, ademais, foi reforçado durante a pandemia, quando o Congresso aprovou um pacote de socorro a estados e municípios que se mostrou superior ao necessário. Passado o pior da crise sanitária, as receitas aumentaram com a recuperação surpreendente da economia.

Em consequência, a dívida da prefeitura ronda hoje não mais que R$ 22 bilhões, menos que os R$ 25,6 bilhões contabilizados no caixa em agosto último —e o projeto de Orçamento para o próximo ano bate novo recorde de despesas autorizadas, de R$ 122,7 bilhões, como mostra uma série de reportagens da Folha.

Trata-se de montante superior ao previsto na quase totalidade dos estados do país, exceções feitas a São Paulo (R$ 372,5 bilhões) e Minas Gerais (R$ 133,8 bilhões) —no Rio, o valor orçado é muito semelhante (R$ 122,2 bilhões).

A situação financeira favorável não significa, entretanto, que há dinheiro sobrando. Gastos correntes, de caráter continuado e no mais das vezes obrigatórios, consomem perto de 95% das principais receitas. Estreita-se, assim, a margem para investimentos e novos programas.

As principais áreas finalísticas no município são educaçãosaúde, urbanismo (manutenção e obras) e transporte. Com a adição dos inescapáveis encargos previdenciários, chega-se perto de 80% dos desembolsos totais.

Seja Ricardo Nunes (MDB), caso reeleito, seja Guilherme Boulos (PSOL), o prefeito que assumir no próximo ano deverá ter pela frente, de todo modo, um mandato inteiro de condições orçamentárias bem melhores que as enfrentadas pelos antecessores. Sua responsabilidade será evitar tentações perdulárias e superar os múltiplos atrasos na gestão da cidade mais rica do país.

Está difícil defender o Supremo

O Estado de S. Paulo

Crise de confiança no STF deveria ser resolvida por autocontenção dos ministros. Mas não se pode esperar por autocontenção quando os próprios ministros não admitem que erram

Está muito difícil defender o Supremo Tribunal Federal (STF) ultimamente. O Estadão, recorde-se, esteve na vanguarda do apoio ao Supremo quando a Corte, de modo destemido, ajudou a desbaratar o golpismo que foi urdido pelos inconformados com a democracia durante o tenebroso mandato de Jair Bolsonaro na Presidência. Mas hoje já não há mais ameaça que justifique a excepcionalidade hermenêutica e moral que alguns dos ministros parecem reivindicar, pairando, como os deuses olímpicos, acima do bem e do mal. E isso, obviamente, é indefensável para os que, como este jornal, prezam os princípios mais comezinhos da República.

Tome-se o exemplo de recente declaração do presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, a propósito da presença dele e de seus colegas de Corte em eventos empresariais privados mundo afora. Para o sr. Barroso, não há nenhum problema moral ou institucional quando ele e o ministro Dias Toffoli aceitam participar de um convescote para “discutir o Brasil” confortavelmente em Roma sob o patrocínio da JBS, empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista – que inclusive integrou um dos painéis como palestrante. Além do fato de a mulher do sr. Toffoli, Roberta Rangel, advogar para a holding J&F, controladora da JBS, o próprio ministro exarou inesquecíveis decisões monocráticas que beneficiaram diretamente os irmãos Batista, em particular a que anulou uma multa de R$ 10,3 bilhões estabelecida no acordo de leniência firmado pelo grupo empresarial com o Ministério Público Federal. É esse tipo de comportamento que de fato torna urgente “discutir o Brasil” – e não precisa ser em Roma ou alhures, pode ser aqui mesmo.

Pois para o sr. Barroso, quem critica sua presença e a de seu colega Toffoli no evento de Roma ou em qualquer outro do gênero, que lamentavelmente já se tornaram comuns, é movido por “preconceito contra a iniciativa privada”. Ora, este jornal, como sabem todos, é entusiasta da iniciativa privada desde sua fundação, lá se vão quase 150 anos. Ao mesmo tempo, contudo, é empedernido defensor da distinção entre o público e o privado, exatamente para que não haja contaminação de interesses privados na tomada pública de decisões, especialmente no terreno jurídico, como se espera no Estado Democrático de Direito. Por essa razão, repudiamos a presença de ministros do Supremo em eventos privados que têm, entre seus propósitos subjacentes, aproximar empresários com causas no Judiciário e juízes que podem vir a julgá-las.

A fala do sr. Barroso recenderia a cinismo não fosse mais uma mostra de quão descolado o presidente do STF parece estar da realidade do País e, principalmente, daquilo que a sociedade espera do chefe do Poder Judiciário. À guisa de defesa, Barroso tornou a dizer que “conversa” com os mais variados setores da sociedade, demonstrando não ver problema algum em também “conversar”, ora vejam, com grandes empresários que têm total interesse em decisões do STF que afetam diretamente os seus negócios. Numa leitura eivada de autoritarismo das justas críticas que o STF tem recebido pela abertura que dá à desconfiança dos cidadãos, Barroso, na prática, espera que os brasileiros simplesmente confiem na integridade e nas boas intenções dos ministros do STF – afinal, é a instituição que, segundo suas palavras, haverá de “recivilizar” o Brasil.

Basicamente, só há duas saídas para essa crise de confiança por que passa o Supremo há mais tempo do que seria suportável pela democracia brasileira. A primeira está em andamento no Congresso e tem o objetivo de conter a atuação do STF por meio de Propostas de Emenda à Constituição e projetos de lei. Não é a saída ideal, haja vista que implica uma politização que pode levar a resultados muito distintos – e mais perigosos – do que os esperados.

A outra saída é a tão ansiada autocontenção. Mas, para que se autocontenham, é óbvio, primeiro os ministros do STF precisariam admitir que erram. E por ora não há sinal de que Suas Excelências deixaram de confundir a toga que vestem com a Égide de Atena.

Artilharia contra o alvo errado

O Estado de S. Paulo

Apagão em São Paulo é o mais novo pretexto do ministro Silveira para fustigar a Aneel, contra a qual declarou guerra por se recusar a aceitar a autonomia da agência reguladora

No mundo dos negócios, é comum repetir a máxima de que toda crise pode se transformar em uma oportunidade. Frequentemente, no entanto, situações adversas não se convertem em ocasiões de melhoria ou aprendizado, mas em pretextos para arrivistas aproveitarem as circunstâncias para fazer o que já queriam ter feito.

Vejamos o episódio que assola a maior cidade do País desde a semana passada. Quase 300 mil residências paulistanas continuam sem luz passados tantos dias da tempestade da noite de sexta-feira. Por pior que tenha sido o temporal, não parece haver justificativa para a demora da Enel São Paulo em restabelecer o fornecimento de energia na região.

Indícios, no entanto, precisam ser comprovados, e de maneira técnica. Se houve incompetência, cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) apurar os fatos em um processo próprio, com base na legislação, nos regulamentos do setor e no contrato firmado entre a empresa e a União. Ao fim desse processo, a Aneel pode até recomendar a caducidade da concessão, mas a empresa deve ter assegurado o amplo direito à defesa.

É o que a agência reguladora tem feito nos últimos anos. Desde 2018, o órgão regulador aplicou multas que totalizaram R$ 320 milhões à Enel-SP. É assim que funciona a regulação econômica no setor elétrico. A Aneel estabelece uma tarifa capaz de atrair o setor privado e não sobrecarregar em demasia o consumidor, premia as empresas que superam os indicadores e pune aquelas que não cumprem o esperado – caso da concessionária em questão.

Certamente há espaço para aperfeiçoamentos, mas até mesmo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) atestou que a Aneel é um exemplo a ser seguido por outras agências reguladoras brasileiras em termos de governança, transparência e qualidade técnica.

É incompreensível, portanto, o anúncio da Controladoria-Geral da União (CGU) de que fará uma auditoria no processo de fiscalização da Aneel sobre a Enel-SP. Segundo o ministro Vinicius Marques de Carvalho, trata-se de um pedido do presidente Lula da Silva, que julga não terem sido tomadas medidas suficientes para mitigar os danos do apagão de novembro do ano passado.

Ora, em razão desse episódio, a Aneel emitiu a maior penalidade de sua história à Enel-SP, de R$ 165,8 milhões. O motivo foi justamente a leniência da empresa em restabelecer o fornecimento de energia. Essa multa só não foi paga porque a distribuidora recorreu à Justiça para suspender a cobrança até que o mérito da ação seja julgado – como, aliás, é seu direito.

O ato da CGU parece ser apenas mais uma etapa da guerra deflagrada pelo governo contra a Aneel. A artilharia é liderada pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que não perde a chance de fustigar a agência.

Em sua saga, Silveira chegou a acusar os diretores de serem bolsonaristas e boicotarem os interesses do País, embora ele mesmo, enquanto senador, quase tenha se tornado líder do governo Bolsonaro na Casa a convite da administração anterior.

Bem se sabe que a rusga de Silveira nada tem a ver com convicções políticas. A exemplo de muitos integrantes do governo, inclusive Lula da Silva, ele finge não entender o conceito de autonomia das agências reguladoras. Embora esteja vinculada ao Ministério de Minas e Energia, a Aneel não se subordina ao Executivo, como deseja o ministro.

A verdade é que as agências reguladoras são pilares do modelo de privatizações de empresas estatais, algo que Lula da Silva nunca apoiou. Para funcionarem bem, elas dependem de indicações técnicas, um critério não raro relegado a segundo plano. Isso não significa que elas devam ser atacadas, mas sim valorizadas e fortalecidas para cumprir sua função enquanto instituições de Estado.

A tese dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia deste ano, Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, é a de que países com instituições fortes, que protegem os direitos de propriedade e permitem a participação econômica generalizada, tendem a ser mais ricos e prósperos e menos desiguais. Quem sabe agora o governo Lula da Silva consiga assimilar essa ideia.

Um Nobel à prosperidade

O Estado de S. Paulo

Premiação destaca papel de instituições sólidas na indução do crescimento econômico

Os economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson receberam o prêmio de Ciências Econômicas concedido pelo Banco Central da Suécia (mais conhecido como Nobel de Economia) deste ano por terem “demonstrado a importância de instituições sociais para a prosperidade de um país”. A premiação não poderia vir em melhor hora, uma vez que não apenas no Brasil, mas no mundo, ataques ao Estado de Direito e às instituições democráticas vivem uma escalada agressiva.

O tipo de instituição legado ao mundo pelos colonizadores europeus tem tudo a ver, segundo Acemoglu, Johnson e Robinson, com a prosperidade de uma nação. Como bem se sabe no Brasil, o objetivo da colonização, em alguns países, era explorar a população nativa e extrair recursos naturais em benefício dos colonizadores. Mas houve casos em que os colonizadores também construíram sistemas políticos e econômicos inclusivos para o benefício deles próprios, pois se estabeleceriam nesses novos destinos. E é a diferença entre esses modelos que, afirmam os laureados, explica por que 20% dos países mais ricos do mundo são hoje 30 vezes mais ricos que os 20% mais pobres, além de a diferença de renda entre nações mais ricas e mais pobres ser persistente.

Países nos quais a colonização promoveu a formação de instituições sólidas prosperaram, enquanto aqueles nos quais os colonizadores buscaram primordialmente a exploração das populações e dos recursos locais são mais pobres. Ainda que os países pobres também tenham se tornado mais ricos, eles são hoje bem menos prósperos que aqueles cuja colonização foi realizada num ambiente em que o colonizador reduziu o arbítrio e fortaleceu a estabilidade e a previsibilidade.

De acordo com Acemoglu, Johnson e Robinson, é o padrão de colonização – instituições fracas ou fortes – que explica a prosperidade de uma nação, e não o tipo de colonizador. Aqui reside uma lição importante para o Brasil, onde há certa crença de que a colonização anglo-saxã seria “superior” à ibérica e que é por isso que nosso país não prospera. Ora, nem toda nação colonizada por anglo-saxões é próspera. Os integrantes do antigo Império Britânico são hoje um emaranhado de países completamente desigual, muitos dos quais bem mais atrasados que o Brasil.

Posto que não se pode passar a vida a lamentar o modelo de colonização que os portugueses empregaram no Brasil nem seguir pela eternidade atado à crença infundada de que foi o colonizador em si, não o modelo adotado, que nos trouxe até aqui, resta buscar fortalecer e respeitar as instituições, aquelas que, segundo as evidências, são o alicerce das nações prósperas, mas que vivem sob ataques cada vez mais constantes, à esquerda e à direita.

A lição do Nobel é clara. Em vez de buscar aparelhar ou cooptar o Estado para dele extrair privilégios e proteger seus interesses privados em detrimento dos interesses públicos, a elite brasileira, tanto no setor público como no setor privado, deveria investir tempo e energia para fortalecer as instituições que garantem a estabilidade e a justiça, condições indispensáveis para a prosperidade sustentável de todos e de cada um dos cidadãos.

É preciso combater o machismo no futebol brasileiro

Correio Braziliense

O cenário exige que os clubes e as confederações tomem medidas duras para combater a violência contra a mulher no futebol e, mais do que isso, conscientizem seus atletas sobre eventuais crimes que se tornaram recorrentes no noticiário esportivo

Quando se fala sobre o mundo da bola, a maior parte do debate público se volta ao que acontece dentro das quatro linhas. Gols, passes, dribles, defesas marcantes e até erros de arbitragem ocupam o imaginário popular com contornos de emoção. Nos últimos anos, porém, chama a atenção a ainda limitada discussão sobre a violência contra a mulher no esporte mais popular do país — situação que já colocou atrás das grades jogadores renomados com passagens pela Seleção Brasileira, como Robinho e Daniel Alves.

Na Europa, veio à tona ontem uma investigação do Ministério Público da Suécia que, segundo a imprensa internacional, pode envolver o nome do atacante Kylian Mbappé, estrela do Real Madrid e da França, um dos maiores craques da atualidade. Sua advogada garante a inocência dele.  Ainda na Espanha, circulou na imprensa mundial, no mês passado, um "contrato de estupro acidental" que jogadores têm apresentado a mulheres para evitar denúncias de crimes do tipo, diante da alta de casos recentemente. O documento, além de frágil judicialmente, expõe a faceta mais cruel do machismo no futebol. Os atletas invertem a lógica e querem, na prática, ser tratados como uma parcela da sociedade acima do bem e do mal.

Todo esse contexto se soma ao que se vê nas arquibancadas mundo afora. Quem frequenta estádios se depara com frequência com músicas machistas, que objetificam a mulher para provocar um rival — sem contar os olhares indesejados independentemente da roupa usada. O cenário exige que os clubes e as confederações tomem medidas duras para combater a violência contra a mulher no futebol e, mais do que isso, conscientizem seus atletas sobre eventuais crimes que se tornaram recorrentes no noticiário esportivo.

Recentemente, Atlético, Cruzeiro e América marcaram golaços ao divulgarem, entre seus funcionários, inclusive os atletas, o protocolo Fale Agora, desenvolvido pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese-MG) para trabalhar a questão com os departamentos de psicologia e pedagogia dos três principais clubes mineiros.

É papel dos clubes realizar medidas efetivas para reduzir os casos de violência contra a mulher. Pouco adianta aderir a campanhas educativas nos uniformes se, dentro do vestiário, posturas machistas são aceitas sem problematização. Ou se atletas são contratados mesmo com denúncias de crimes contra mulheres. Não se trata de caça às bruxas, mas é preciso prudência para que aquele acusado só volte a ocupar uma posição de destaque após a apuração completa do caso.

Parte desse combate também passa por maiores investimentos no futebol feminino — parcela essa que também cabe ao torcedor cobrar efetivamente seus dirigentes. Além disso, é preciso reconhecer a atribuição que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) tem nesse necessário combate. Sempre muito preocupada com a Seleção Brasileira, a CBF fecha os olhos para problemas recorrentes da modalidade no país — entre eles, a violência contra a mulher e o machismo abertamente vociferado com orgulho nas arquibancadas. Um problema não só do esporte, mas também dele.  

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