domingo, 12 de janeiro de 2025

Consertado o relógio, resta cuidar do País - Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo

Lula pode contabilizar crescimento acumulado superior a 6,5%, mas deve reconhecer insegurança das contas públicas, desconfiança do mercado e persistência do risco inflacionário

Quando ouço a palavra cultura, pego minha arma. Citação imprecisa de uma peça do alemão Hanns Jost, essa frase poderia ter sido lembrada na terça-feira, em Brasília, quando foram reintegradas ao acervo do governo 21 peças vandalizadas em 8 de janeiro de 2023. O horror dos golpistas à arte, à cultura e a outras manifestações da civilização manifestou-se mais uma vez, naquele dia, quando vândalos depredaram as sedes dos Três Poderes e emporcalharam com sua presença a capital da República. Agora restauradas, ânforas de porcelana haviam sido reduzidas a cacos pelos invasores do Palácio do Planalto. Também foi reconstituído o relógio trazido ao Brasil em 1808 pelo regente João VI e arrebentado por um dos manifestantes.

Diante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a reintegração das peças de arte foi a primeira cerimônia realizada na rememoração dos atos golpistas. Houve quem criticasse a iniciativa presidencial, como se fosse um exagero recordar a baderna de dois anos antes. Chefes dos outros Poderes preferiram programas familiares e foram representados por outras autoridades. Comandantes militares compareceram, reiterando o compromisso legalista das Forças Armadas. Já reafirmado no final do governo anterior, esse legalismo frustrou a conspiração da extrema direita, naquela ocasião, e assim contribuiu para a sucessão regular na Presidência da República.

A reapresentação daquelas peças foi tão rica de simbolismo quanto o comparecimento dos chefes militares. Os dois eventos compuseram um quadro de normalidade política – de uma normalidade preciosa, desejável e de nenhum modo garantida na vida brasileira. A ditadura militar foi enterrada há mais de 40 anos. Uma Constituição democrática vigora desde o final de 1988, mas a tentação do autoritarismo permanece. Segundo pesquisas de opinião bem divulgadas, parcelas substanciais da cidadania já se disseram dispostas, em certas circunstâncias, a aceitar governos autoritários.

Além disso, manifestações de grupos de direita em eventos públicos, na última disputa eleitoral da Presidência, apoiaram discursos claramente antidemocráticos. A mistura de política e religião, pouco visível na história do Brasil independente, só teve alguma importância em raros momentos, como em 1964. Tornou-se mais frequente e até relevante, no entanto, desde a ascensão do bolsonarismo. Explorada por certas lideranças, essa combinação pode ter efeitos tóxicos para a democracia.

Não basta o presidente Lula entrar no jogo e participar, de cabeça baixa e olhos fechados, em aparente oração, de eventos políticos promovidos por movimentos de tipo religioso. Num país democrático, todo governante deve respeitar as diferentes crenças e defender os direitos de seus adeptos, mas sempre evitando a mistura das dimensões civil e espiritual. Essa mistura ocorre, no entanto, quando parlamentares tentam, por exemplo, eliminar totalmente o direito ao aborto, já restrito, na lei brasileira, a circunstâncias muito limitadas.

A distinção entre norma civil e norma religiosa tem sido perigosamente ameaçada nos últimos anos, numa afronta indisfarçável ao caráter leigo do Estado. Essa distinção seria, talvez, preservada com maior eficácia se mais pessoas se lembrassem do direito ao divórcio, instituído no Brasil em 1977, depois de 26 anos de luta política do senador Nelson Carneiro. Ele mesmo nunca se divorciou, mas trabalhou para garantir esse direito aos seus concidadãos, batalhando contra lideranças católicas autointituladas defensoras da família brasileira. A mudança ocorreu por meio de emenda à Constituição proposta por Nelson Carneiro e por seu colega Accioly Filho.

Preservar a distinção entre valores privados e valores públicos – entre religião e normas civis, por exemplo – é uma das funções principais do político e um de seus maiores desafios. Essa tarefa deve incluir a diferenciação entre bandeiras e interesses partidários e objetivos e condições da gestão pública. Diferenciar essas dimensões pode ser mais difícil do que talvez pareça inicialmente.

A decisão de investir, por exemplo, em projetos e programas considerados de grande valor social pode resultar em impasse ou mesmo em desastre, se o governante desprezar as condições das finanças públicas. Há diferenças importantes entre gestão governamental e gestão privada, mas algumas semelhanças podem ser vitais. A mais evidente, mas nem sempre lembrada, é a limitação de recursos.

Já na metade de seu terceiro mandato, o presidente Lula pode contabilizar um crescimento acumulado talvez superior a 6,5%, ampla criação de empregos, aumento do consumo e melhora das condições das famílias pobres, mas deve reconhecer a insegurança das contas públicas, a desconfiança do mercado e a persistência do risco inflacionário. As projeções apontam crescimento baixo e perspectivas econômicas medíocres. Contidos os golpistas, recuperado o relógio histórico e consertadas as velhas ânforas, falta cuidar de 2025 e 2026, sem descuidar – isto é fundamental – das finanças federais.

 

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