O Estado de S. Paulo
Lula pode contabilizar
crescimento acumulado superior a 6,5%, mas deve reconhecer insegurança das
contas públicas, desconfiança do mercado e persistência do risco inflacionário
Quando ouço a palavra cultura, pego minha arma. Citação imprecisa de uma peça do alemão Hanns Jost, essa frase poderia ter sido lembrada na terça-feira, em Brasília, quando foram reintegradas ao acervo do governo 21 peças vandalizadas em 8 de janeiro de 2023. O horror dos golpistas à arte, à cultura e a outras manifestações da civilização manifestou-se mais uma vez, naquele dia, quando vândalos depredaram as sedes dos Três Poderes e emporcalharam com sua presença a capital da República. Agora restauradas, ânforas de porcelana haviam sido reduzidas a cacos pelos invasores do Palácio do Planalto. Também foi reconstituído o relógio trazido ao Brasil em 1808 pelo regente João VI e arrebentado por um dos manifestantes.
Diante do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, a reintegração das peças de arte foi a primeira cerimônia
realizada na rememoração dos atos golpistas. Houve quem criticasse a iniciativa
presidencial, como se fosse um exagero recordar a baderna de dois anos antes.
Chefes dos outros Poderes preferiram programas familiares e foram representados
por outras autoridades. Comandantes militares compareceram, reiterando o
compromisso legalista das Forças Armadas. Já reafirmado no final do governo
anterior, esse legalismo frustrou a conspiração da extrema direita, naquela
ocasião, e assim contribuiu para a sucessão regular na Presidência da
República.
A reapresentação daquelas
peças foi tão rica de simbolismo quanto o comparecimento dos chefes militares.
Os dois eventos compuseram um quadro de normalidade política – de uma
normalidade preciosa, desejável e de nenhum modo garantida na vida brasileira. A
ditadura militar foi enterrada há mais de 40 anos. Uma Constituição democrática
vigora desde o final de 1988, mas a tentação do autoritarismo permanece.
Segundo pesquisas de opinião bem divulgadas, parcelas substanciais da cidadania
já se disseram dispostas, em certas circunstâncias, a aceitar governos
autoritários.
Além disso, manifestações de
grupos de direita em eventos públicos, na última disputa eleitoral da
Presidência, apoiaram discursos claramente antidemocráticos. A mistura de
política e religião, pouco visível na história do Brasil independente, só teve
alguma importância em raros momentos, como em 1964. Tornou-se mais frequente e
até relevante, no entanto, desde a ascensão do bolsonarismo. Explorada por
certas lideranças, essa combinação pode ter efeitos tóxicos para a democracia.
Não basta o presidente Lula
entrar no jogo e participar, de cabeça baixa e olhos fechados, em aparente
oração, de eventos políticos promovidos por movimentos de tipo religioso. Num
país democrático, todo governante deve respeitar as diferentes crenças e defender
os direitos de seus adeptos, mas sempre evitando a mistura das dimensões civil
e espiritual. Essa mistura ocorre, no entanto, quando parlamentares tentam, por
exemplo, eliminar totalmente o direito ao aborto, já restrito, na lei
brasileira, a circunstâncias muito limitadas.
A distinção entre norma
civil e norma religiosa tem sido perigosamente ameaçada nos últimos anos, numa
afronta indisfarçável ao caráter leigo do Estado. Essa distinção seria, talvez,
preservada com maior eficácia se mais pessoas se lembrassem do direito ao
divórcio, instituído no Brasil em 1977, depois de 26 anos de luta política do
senador Nelson Carneiro. Ele mesmo nunca se divorciou, mas trabalhou para
garantir esse direito aos seus concidadãos, batalhando contra lideranças
católicas autointituladas defensoras da família brasileira. A mudança ocorreu
por meio de emenda à Constituição proposta por Nelson Carneiro e por seu colega
Accioly Filho.
Preservar a distinção entre
valores privados e valores públicos – entre religião e normas civis, por
exemplo – é uma das funções principais do político e um de seus maiores
desafios. Essa tarefa deve incluir a diferenciação entre bandeiras e interesses
partidários e objetivos e condições da gestão pública. Diferenciar essas
dimensões pode ser mais difícil do que talvez pareça inicialmente.
A decisão de investir, por
exemplo, em projetos e programas considerados de grande valor social pode
resultar em impasse ou mesmo em desastre, se o governante desprezar as
condições das finanças públicas. Há diferenças importantes entre gestão
governamental e gestão privada, mas algumas semelhanças podem ser vitais. A
mais evidente, mas nem sempre lembrada, é a limitação de recursos.
Já na metade de seu terceiro
mandato, o presidente Lula pode contabilizar um crescimento acumulado talvez
superior a 6,5%, ampla criação de empregos, aumento do consumo e melhora das
condições das famílias pobres, mas deve reconhecer a insegurança das contas
públicas, a desconfiança do mercado e a persistência do risco inflacionário. As
projeções apontam crescimento baixo e perspectivas econômicas medíocres.
Contidos os golpistas, recuperado o relógio histórico e consertadas as velhas
ânforas, falta cuidar de 2025 e 2026, sem descuidar – isto é fundamental – das
finanças federais.
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