José Eli da Veiga
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Foi somente em 1950 que o crescimento econômico virou objetivo supremo das políticas governamentais. Ruptura forjada por rápido convencimento prévio de que só ele seria capaz de engendrar pleno emprego, objetivo até então preferido por todos os que haviam aderido ao keynesianismo. E uma ruptura para a qual foi decisiva a combinação das idéias de Sir Roy Forbes Harrod, na Inglaterra em 1939, com as de Evsey Domar, nos EUA em 1946, no persuasivo modelo Harrod-Domar. Em plena Guerra Fria, a panacéia foi inevitável: fosse qual fosse o contexto, não haveria mazela social que pudesse resistir a uma boa dose de crescimento econômico. Nem mesmo as desigualdades.
As críticas não demoraram a surgir. Basta lembrar que em 1958 foi lançada a primeira edição do clássico "A Sociedade Afluente" de John Kenneth Galbraith. Embora tenha sido ignorado pela maioria dos economistas, por considerarem o autor no máximo um bom comentarista político, nada de parecido poderia ter ocorrido com Ezra J. Mishan ao publicar, em 1967, uma obra-prima sobre os custos do crescimento econômico (traduzida no Brasil com título tragicamente equivocado). O longo e acirrado debate entre Mishan e Wilfred Beckerman inaugurou a controvérsia científica sobre o crescimento como dogma.
Entretanto, foram posteriores os mais incisivos ataques contra aquilo que passou a ser chamado de "mania" ou "fetiche" do crescimento. E menos motivados pelos custos apontados por Mishan, do que pelo avanço da consciência sobre seus limites socioambientais. Particularmente nas obras pioneiras publicadas na década de 1970 por William Kapp, Kenneth Boulding e Herman Daly. Que, por incrível que pareça, nada pesaram no processo de emergência da noção "desenvolvimento sustentável". O famoso documento da ONU "Nosso Futuro Comum", mais conhecido como Relatório Brundtland, mostra bem como era forte em 1987 a miragem de uma "nova era de crescimento econômico baseada em políticas que sustentem e expandam a base de recursos naturais".
Ocorreu o avesso. O que ficou cada vez mais evidente ao longo dos últimos dois decênios foi a irresponsável temeridade de se aceitar a dependência de energias de origem fóssil. Não apenas pela necessidade de se combater o aquecimento global, que agora se mostra incontornável. Também porque não poderiam ser mais sombrias as conseqüências geopolíticas das desigualdades de acesso às jazidas de petróleo, carvão e gás. E o que é pior: sem que qualquer promessa de inovação científico-tecnológica permita vislumbrar a saída. Por isso, é claro que os problemas ambientais globais deveriam dominar a pauta da eventual reunião de cúpula que talvez se imponha por outra razão: o cenário recessivo que brota de uma das mais sórdidas crises financeiras de que se tem notícia.
Só que esse hipotético "novo Bretton Woods" de pouco serviria se não engendrasse firme cooperação internacional para promover efetivas decolagens em cerca de 70 dos países mais periféricos, nos quais o crescimento econômico é condição necessária, e até suficiente, para que se desenvolvam. Exatamente o inverso do que ocorre nos países centrais, onde o mito do "crescimento sustentável" continuará a causar muito mais prejuízos do que benefícios. E se tal virada fosse bem arquitetada, certamente poderia amortecer os impactos sociais causados por reestruturações no Norte, assim como os ambientais resultantes de mais dinamismo no Sul.
A grande incógnita estaria na semi-periferia. Mas não apenas em quatro "BRIC", ou em punhado de "emergentes". Em 72 países cujas trajetórias de crescimento fazem com que tenham emissões de gases estufa que ultrapassam as de países centrais. Principalmente um grupo de 20 que já causa estrago bem maior que o dos dez maiores emissores do núcleo central. E sem que possam sequer admitir uma ínfima dúvida sobre a necessidade de crescimento de suas economias. Continuariam inteiramente à mercê do surgimento de inovações que descarbonizassem suas matrizes energéticas.
O maior obstáculo, contudo, talvez nem fosse esse, e sim a dificuldade de se admitir que os países mais desenvolvidos já possam dispensar o crescimento econômico. Daí a importância de três claros sinais de que começa a sair do gueto o movimento intelectual que pretende caminhar nessa direção.
O primeiro é um livro cujo próprio título enfatiza ser muito melhor reduzir o crescimento de propósito do que ter de encará-lo por desastre: "Managing Without Growth - Slower by Design, Not Disaster", do professor Peter A. Victor, da Universidade de York do Canadá (Edward Elgar: 2008). Com a ajuda de simulações econométricas, mostra os possíveis resultados de um decrescimento bem administrado da economia canadense com a meta de atingir uma condição estacionária por volta de 2030. Os benefícios socioambientais e econômicos não poderiam ser superiores: pleno emprego, eliminação da pobreza, mais lazer, considerável redução das emissões de gases-estufa, e tudo com equilíbrio fiscal.
O segundo está no dossiê "A estupidez do crescimento", que ocupou 15 páginas da edição de 18/10 da revista britânica "NewScientist", com merecido destaque para Herman Daly. Ele reconhece que, além de radical, o anseio de abolir a obsessão pelo crescimento parece politicamente inviável. Mas também pede que se admita quão absurda é a idéia oposta, de crescimento além dos limites biofísicos da Terra. E lembra que seus limites econômicos já estão patentes, pois os benefícios de mais crescimento são cada vez mais excedidos pelos custos.
O terceiro foi a realização da primeira conferência internacional sobre "decrescimento econômico para a sustentabilidade ambiental e a equidade social" (www.degrowth.net). Nem tudo chega a ter razoável qualidade na salada de textos que ocupa as mais de 300 páginas de seus anais. Mas há ali algumas pérolas, como a demonstração proposta pelo mestre holandês Roefie Hueting de que não há conflito entre emprego e conservação, por mais que a sustentabilidade seja incompatível com o permanente aumento da produção.
José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA-USP e pesquisador associado do "Capability & Sustainability Centre" da Universidade de Cambridge, com apoio da Fapesp, escreve mensalmente às terças.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Foi somente em 1950 que o crescimento econômico virou objetivo supremo das políticas governamentais. Ruptura forjada por rápido convencimento prévio de que só ele seria capaz de engendrar pleno emprego, objetivo até então preferido por todos os que haviam aderido ao keynesianismo. E uma ruptura para a qual foi decisiva a combinação das idéias de Sir Roy Forbes Harrod, na Inglaterra em 1939, com as de Evsey Domar, nos EUA em 1946, no persuasivo modelo Harrod-Domar. Em plena Guerra Fria, a panacéia foi inevitável: fosse qual fosse o contexto, não haveria mazela social que pudesse resistir a uma boa dose de crescimento econômico. Nem mesmo as desigualdades.
As críticas não demoraram a surgir. Basta lembrar que em 1958 foi lançada a primeira edição do clássico "A Sociedade Afluente" de John Kenneth Galbraith. Embora tenha sido ignorado pela maioria dos economistas, por considerarem o autor no máximo um bom comentarista político, nada de parecido poderia ter ocorrido com Ezra J. Mishan ao publicar, em 1967, uma obra-prima sobre os custos do crescimento econômico (traduzida no Brasil com título tragicamente equivocado). O longo e acirrado debate entre Mishan e Wilfred Beckerman inaugurou a controvérsia científica sobre o crescimento como dogma.
Entretanto, foram posteriores os mais incisivos ataques contra aquilo que passou a ser chamado de "mania" ou "fetiche" do crescimento. E menos motivados pelos custos apontados por Mishan, do que pelo avanço da consciência sobre seus limites socioambientais. Particularmente nas obras pioneiras publicadas na década de 1970 por William Kapp, Kenneth Boulding e Herman Daly. Que, por incrível que pareça, nada pesaram no processo de emergência da noção "desenvolvimento sustentável". O famoso documento da ONU "Nosso Futuro Comum", mais conhecido como Relatório Brundtland, mostra bem como era forte em 1987 a miragem de uma "nova era de crescimento econômico baseada em políticas que sustentem e expandam a base de recursos naturais".
Ocorreu o avesso. O que ficou cada vez mais evidente ao longo dos últimos dois decênios foi a irresponsável temeridade de se aceitar a dependência de energias de origem fóssil. Não apenas pela necessidade de se combater o aquecimento global, que agora se mostra incontornável. Também porque não poderiam ser mais sombrias as conseqüências geopolíticas das desigualdades de acesso às jazidas de petróleo, carvão e gás. E o que é pior: sem que qualquer promessa de inovação científico-tecnológica permita vislumbrar a saída. Por isso, é claro que os problemas ambientais globais deveriam dominar a pauta da eventual reunião de cúpula que talvez se imponha por outra razão: o cenário recessivo que brota de uma das mais sórdidas crises financeiras de que se tem notícia.
Só que esse hipotético "novo Bretton Woods" de pouco serviria se não engendrasse firme cooperação internacional para promover efetivas decolagens em cerca de 70 dos países mais periféricos, nos quais o crescimento econômico é condição necessária, e até suficiente, para que se desenvolvam. Exatamente o inverso do que ocorre nos países centrais, onde o mito do "crescimento sustentável" continuará a causar muito mais prejuízos do que benefícios. E se tal virada fosse bem arquitetada, certamente poderia amortecer os impactos sociais causados por reestruturações no Norte, assim como os ambientais resultantes de mais dinamismo no Sul.
A grande incógnita estaria na semi-periferia. Mas não apenas em quatro "BRIC", ou em punhado de "emergentes". Em 72 países cujas trajetórias de crescimento fazem com que tenham emissões de gases estufa que ultrapassam as de países centrais. Principalmente um grupo de 20 que já causa estrago bem maior que o dos dez maiores emissores do núcleo central. E sem que possam sequer admitir uma ínfima dúvida sobre a necessidade de crescimento de suas economias. Continuariam inteiramente à mercê do surgimento de inovações que descarbonizassem suas matrizes energéticas.
O maior obstáculo, contudo, talvez nem fosse esse, e sim a dificuldade de se admitir que os países mais desenvolvidos já possam dispensar o crescimento econômico. Daí a importância de três claros sinais de que começa a sair do gueto o movimento intelectual que pretende caminhar nessa direção.
O primeiro é um livro cujo próprio título enfatiza ser muito melhor reduzir o crescimento de propósito do que ter de encará-lo por desastre: "Managing Without Growth - Slower by Design, Not Disaster", do professor Peter A. Victor, da Universidade de York do Canadá (Edward Elgar: 2008). Com a ajuda de simulações econométricas, mostra os possíveis resultados de um decrescimento bem administrado da economia canadense com a meta de atingir uma condição estacionária por volta de 2030. Os benefícios socioambientais e econômicos não poderiam ser superiores: pleno emprego, eliminação da pobreza, mais lazer, considerável redução das emissões de gases-estufa, e tudo com equilíbrio fiscal.
O segundo está no dossiê "A estupidez do crescimento", que ocupou 15 páginas da edição de 18/10 da revista britânica "NewScientist", com merecido destaque para Herman Daly. Ele reconhece que, além de radical, o anseio de abolir a obsessão pelo crescimento parece politicamente inviável. Mas também pede que se admita quão absurda é a idéia oposta, de crescimento além dos limites biofísicos da Terra. E lembra que seus limites econômicos já estão patentes, pois os benefícios de mais crescimento são cada vez mais excedidos pelos custos.
O terceiro foi a realização da primeira conferência internacional sobre "decrescimento econômico para a sustentabilidade ambiental e a equidade social" (www.degrowth.net). Nem tudo chega a ter razoável qualidade na salada de textos que ocupa as mais de 300 páginas de seus anais. Mas há ali algumas pérolas, como a demonstração proposta pelo mestre holandês Roefie Hueting de que não há conflito entre emprego e conservação, por mais que a sustentabilidade seja incompatível com o permanente aumento da produção.
José Eli da Veiga, professor titular do departamento de economia da FEA-USP e pesquisador associado do "Capability & Sustainability Centre" da Universidade de Cambridge, com apoio da Fapesp, escreve mensalmente às terças.
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