Luiz Sérgio Henriques
Fonte: Gramsci e o Brasil
As memórias de Leandro Konder — intelectual comunista — soam como a reivindicação contida e orgulhosa do mineiro Murilo Mendes, ao se dizer não um sobrevivente, mas um contemporâneo de si mesmo. É a primeira imagem que me ocorre ao terminar de ler as 262 páginas escritas ao sabor de reminiscências pessoais e políticas, mas principalmente das mais de duas dezenas de títulos publicados pelo autor.
Uma bibliografia de respeito, digna de um intelectual presente na cena pública pelo menos desde 1965, a data de lançamento de Marxismo e alienação. E que, acredito, seja injusto limitar às fronteiras da esquerda. Leandro, desde a juventude, foi amigo e interlocutor de José Guilherme Merquior, Ivan Junqueira e Sérgio Paulo Rouanet, entre muitos outros nomes da grande cultura. O que comprova estarmos diante de um marxista rigoroso, mas flexível, sempre atento às armadilhas do dogmatismo, refratário ao pensamento único, inclusive de esquerda, e aberto ao diálogo com quem não pensa exatamente como ele.
O estilo de Leandro é sinuoso e envolvente. Cada leitor há de ter a sua passagem preferida, como que o “mote” a pedir a própria “glosa”. E logo no início pensei ter achado a “provocação” mais fecunda, a que exige de mim particular cuidado e reflexão. Leandro se pergunta: “O que é ser comunista hoje?”.
E responde: não é acreditar na ressurreição da URSS nem hibernar como urso à espera de uma revolução apocalíptica. Não é repetir no século XXI palavras de Marx ditas em outro contexto, como se ele tivesse elaborado respostas para questões que nem mesmo eram as do seu tempo. Nada disso.
Segundo Leandro, desde Babeuf os comunistas tiveram vários programas. E os reformularam seguidamente, pois programas políticos reapresentados por duas ou três décadas, sem mudanças significativas, tornam-se “uma monstruosidade”.
Este o mote, esta a provocação que recolho. E parto daqui para dizer que o programa comunista não se diferencia só ao longo do tempo, não se articula só diacronicamente, mas também sincronicamente. Comunistas (marxistas) podem ser tragicamente autoritários e até despóticos — e a cultura bolchevique no seu todo tinha muito pouco de democrática, ainda que, contraditoriamente, tenha contribuído para civilizar o capitalismo durante “o breve século XX”.
Mas comunistas podem também ser democráticos, como o testemunha, com seus inevitáveis claro-escuros, a experiência dos italianos (Gramsci, Togliatti, Berlinguer e o eurocomunismo); e, mais perto de nós, a experiência do Chile de Allende banhado em sangue.
Assim, a minha glosa de Leandro, inspirada em tantos dos seus livros, só pode ter este sentido essencial: os comunistas do século XXI estão “condenados”, teórica e politicamente, a elaborar para sempre suas relações com a democracia, o pluralismo, a diversidade; estão “condenados” a darem boas e inéditas respostas para este conjunto de problemas, que, na verdade, nunca os ocupou demasiadamente durante o século passado.
Quando os comunistas se fecham em si mesmos, dormem o sono da razão, que produz monstros. Quando acordam do sono dogmático e se democratizam, individual e coletivamente, são uma instância crítica insubstituível, portadores que então se tornam de exigências profundas de igualdade e decência.
Há décadas, Leandro nos ajuda a permanecer despertos.
Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.
Fonte: Gramsci e o Brasil
As memórias de Leandro Konder — intelectual comunista — soam como a reivindicação contida e orgulhosa do mineiro Murilo Mendes, ao se dizer não um sobrevivente, mas um contemporâneo de si mesmo. É a primeira imagem que me ocorre ao terminar de ler as 262 páginas escritas ao sabor de reminiscências pessoais e políticas, mas principalmente das mais de duas dezenas de títulos publicados pelo autor.
Uma bibliografia de respeito, digna de um intelectual presente na cena pública pelo menos desde 1965, a data de lançamento de Marxismo e alienação. E que, acredito, seja injusto limitar às fronteiras da esquerda. Leandro, desde a juventude, foi amigo e interlocutor de José Guilherme Merquior, Ivan Junqueira e Sérgio Paulo Rouanet, entre muitos outros nomes da grande cultura. O que comprova estarmos diante de um marxista rigoroso, mas flexível, sempre atento às armadilhas do dogmatismo, refratário ao pensamento único, inclusive de esquerda, e aberto ao diálogo com quem não pensa exatamente como ele.
O estilo de Leandro é sinuoso e envolvente. Cada leitor há de ter a sua passagem preferida, como que o “mote” a pedir a própria “glosa”. E logo no início pensei ter achado a “provocação” mais fecunda, a que exige de mim particular cuidado e reflexão. Leandro se pergunta: “O que é ser comunista hoje?”.
E responde: não é acreditar na ressurreição da URSS nem hibernar como urso à espera de uma revolução apocalíptica. Não é repetir no século XXI palavras de Marx ditas em outro contexto, como se ele tivesse elaborado respostas para questões que nem mesmo eram as do seu tempo. Nada disso.
Segundo Leandro, desde Babeuf os comunistas tiveram vários programas. E os reformularam seguidamente, pois programas políticos reapresentados por duas ou três décadas, sem mudanças significativas, tornam-se “uma monstruosidade”.
Este o mote, esta a provocação que recolho. E parto daqui para dizer que o programa comunista não se diferencia só ao longo do tempo, não se articula só diacronicamente, mas também sincronicamente. Comunistas (marxistas) podem ser tragicamente autoritários e até despóticos — e a cultura bolchevique no seu todo tinha muito pouco de democrática, ainda que, contraditoriamente, tenha contribuído para civilizar o capitalismo durante “o breve século XX”.
Mas comunistas podem também ser democráticos, como o testemunha, com seus inevitáveis claro-escuros, a experiência dos italianos (Gramsci, Togliatti, Berlinguer e o eurocomunismo); e, mais perto de nós, a experiência do Chile de Allende banhado em sangue.
Assim, a minha glosa de Leandro, inspirada em tantos dos seus livros, só pode ter este sentido essencial: os comunistas do século XXI estão “condenados”, teórica e politicamente, a elaborar para sempre suas relações com a democracia, o pluralismo, a diversidade; estão “condenados” a darem boas e inéditas respostas para este conjunto de problemas, que, na verdade, nunca os ocupou demasiadamente durante o século passado.
Quando os comunistas se fecham em si mesmos, dormem o sono da razão, que produz monstros. Quando acordam do sono dogmático e se democratizam, individual e coletivamente, são uma instância crítica insubstituível, portadores que então se tornam de exigências profundas de igualdade e decência.
Há décadas, Leandro nos ajuda a permanecer despertos.
Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.
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