DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Interpretar o país tem sido uma prática constante da inteligência brasileira, desde o momento da nossa hora inaugural. Basta pensar, para tanto, nas análises dos construtores do império — como José Bonifácio e Visconde do Uruguai —, que, mais do que elaborarem estudos pormenorizados sobre o país, construíram análises que buscavam compreender nossa realidade para uma intervenção política. Essa forma de interpretar o país tornou-se uma marca da inteligência brasileira no decorrer da história. Atuando em Academias e Institutos, na universidade, nos partidos, ou inseridos no aparelho de Estado, a intelectualidade brasileira buscou se inscrever na esfera pública, formulando e disputando interpretações, análises e projetos sobre o futuro da nação, desempenhando papel de destaque na nossa modernização. Essa forma de interpretação sobre o país foi aqui mobilizada, historicamente, sobretudo como um exercício normativo, visto que buscou não apenas compreender, mas produzir inspiração para intervir e modelar a nossa sociedade.
Não se trata de uma tarefa fácil esta de construir uma análise da conjuntura política do momento que se preocupe não somente com os acontecimentos comezinhos do dia a dia político, mas conjugue a investigação dos mesmos com a interpretação do movimento mais amplo das estruturas. O desafio se coloca no sentido de inserir os fatos habituais em uma linha explicativa alargada, que ultrapasse o cotidiano da política e suas disputas menores. A análise de conjuntura, dessa maneira, não é um exercício de menor relevância, mesmo que não exija um aparato metodológico tão complexo quanto exigiriam os padrões positivistas, o que se por um lado é sua fraqueza, dirão os empiricistas, por outro acaba sendo uma vantagem para aqueles que se aventuram nesta seara, justamente por permitir a realização de voos analíticos mais amplos, sem as amarras colocadas pelos rigores “científicos”.
O principal desafio para uma análise de conjuntura consiste na tarefa de pensar e analisar o fato ao mesmo tempo em que ocorre, de tentar conciliar a reflexão com o que pari passu se dá no “mundo real”. A análise de conjuntura traz em seu bojo alguns problemas complexos, como, por exemplo, o da articulação entre o papel do ator — seja ele individual ou coletivo — e a estrutura. O velho problema da capacidade ou incapacidade de o sujeito intervir nos fatos, a despeito das forças estruturais que regem a sociedade. Uma boa análise de conjuntura tem de dar conta de inserir os desafios daquele momento específico, os acontecimentos, em uma perspectiva de “longa duração”, na linguagem do historiador Fernand Braudel (1976), atenta ao movimento mais geral que rege a sociedade, percebendo aquilo que permanece e aquilo que se transforma.
A análise de conjuntura quando bem realizada torna-se capaz de permitir a explicação para a intervenção política, na medida em que, ao organizar analiticamente o fluxo dos acontecimentos, logra aumentar as potencialidades de êxito da ação daqueles que desejam alterar determinada ordem ou conservar o status quo. Ela permite mapear o terreno no qual as forças sociais travam as disputas políticas, bem como enfrentam os nós górdios que atravancam o andamento da mudança. Assim, abre possibilidades para a atuação dos sujeitos da transformação naqueles movimentos que Gramsci denominou de “grande política”, que compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, defesa ou conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais, em contraposição à “pequena política”, relacionada às questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida, em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política (GRAMSCI, 2000: 21-2).
A despeito dessa importância conferida à análise de conjuntura e não obstante o fato de ela se configurar como uma marca característica da inteligência brasileira, fato é que os últimos anos foram caracterizados por uma escassez relativa desta forma de análise. Não se trata aqui de procurar uma explicação para isso e não pretendo entrar no mérito da tão propalada polêmica do “silêncio dos intelectuais”, que ganhou espaço significativo na imprensa brasileira em 2005, quando dos escândalos relacionados aos esquemas de corrupção, comumente conhecidos como “mensalão”. O que se quer ressaltar aqui é que ao movimento dos fatos não houve uma correspondência de análises capazes de darem conta da complexidade do movimento de conservação-transformação que teve curso no Brasil nos últimos oito anos. A impressão que se tem é a de que o movimento conjuntural, impulsionado pela realização de uma política — com seus erros e acertos — movida muito mais pela percepção, pelo instinto e pela habilidade, não foi acompanhado por uma mediação reflexiva, o que teve claras consequências para a própria execução desta ação política.
Seria injusto, contudo, generalizar esse quadro. Não é possível adentrar nesse campo sem que mencionemos determinas análises conjunturais realizadas nos últimos anos, a partir de diferentes posições políticas, fundamentais para uma compreensão mais pormenorizada do que vêm representando os oito anos do Governo Lula para a história do país. Desde já é importante ressaltar que não pretendo esgotar a enumeração das mesmas, mas apenas destacar algumas que, a meu ver, parecem interessantes, no sentido de desvendar diferentes possibilidades de leitura de um período intrinsecamente marcado pela contradição. Para tanto, vale destacar as análises de conjuntura realizadas por Francisco de Oliveira, cuja caracterização do governo Lula como uma “hegemonia às avessas” (OLIVEIRA, 2007) — na medida em que a classe dominante aceitaria ceder o discurso político aos dominados, que Lula, em tese, representaria, sob condição de que os fundamentos da sua dominação não fossem questionados — foi radicalizada recentemente, alcunhada de “avesso do avesso” (OLIVEIRA, 2009), em decorrência da negação da política, que, cada vez mais administrativa e espetacularizada, não mais passaria pelo conflito de classes. O “lulismo”, dessa forma, seria a “vanguarda do atraso” e o “atraso da vanguarda”.
Luiz Werneck Vianna, por sua vez, vem desenvolvendo algumas análises nos últimos anos, que podem ser sintetizadas em sua caracterização do governo do PT como uma espécie de “viagem quase redonda”, pelo fato de o partido ter realizado uma releitura da sua própria história ao chegar ao governo, revalorizando o nacional-desenvolvimentismo, que antes tanto criticara, sem, contudo, reinventá-lo em uma chave progressista (WERNECK VIANNA, 2009a). As forças que deveriam apresentar a descontinuidade se tornaram as portadoras da continuidade, trazendo de volta a lógica política dos processos de modernização, com as mudanças sendo processadas pelo alto, tendo a consequência da subsunção do social ao Estado, que passa a processar e arbitrar os conflitos entre classes e frações de classes no interior do governo. Mais recentemente, Werneck Vianna retomou sua crítica à ordem grã-burguesa hoje vigente no país, que, embora contemplando os interesses de diversos segmentos da sociedade, tem sido marcada pela captura da política pelo Estado, sob a liderança de um chefe carismático, e pela condução de um processo de modernização a partir do alto, que, a despeito da retórica fraterna, não traz consigo o moderno, que suporia autonomia dos sujeitos na trama do social (WERNECK VIANNA, 2009b).
No campo da oposição, vale lembrar a análise de conjuntura realizada recentemente por Fernando Henrique Cardoso, publicada em diversos jornais do país, em artigo intitulado “Para onde vamos?”, que, não obstante vários equívocos, teve o mérito de superar o recorrente silêncio da oposição. O ex-presidente acusa o DNA do “autoritarismo popular” do atual governo por ir minando progressivamente o espírito da democracia constitucional, que suporia regras, informação, participação, representação e deliberação consciente. Cardoso retoma a crítica realizada outrora por Francisco de Oliveira (2003) à “nova classe” da burocracia sindical aninhada no Estado, tendo como base os fundos de pensão, todos fundidos nos altos-fornos do Tesouro, para proceder à sua crítica ao bloco que denomina como “subperonismo lulista”, do qual participariam partidos fracos, sindicatos fortes e fundos de pensão em convergência com os interesses de um partido no governo; um bloco para o qual atrairiam sócios privados privilegiados (CARDOSO, 2009).
Outras análises de conjuntura têm optado por encarar o Governo Lula a partir de um viés mais positivo, destacando os avanços que ocorreram nos últimos anos, não obstante apontem as contradições e os desafios no sentido de aprofundar as transformações ora em curso. Em um instigante artigo intitulado “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, publicado na revista Novos Estudos, o cientista político e ex-porta voz da presidência, André Singer, apontou o “lulismo” como a execução de um projeto político marcado pela redistribuição de renda ao setor mais pobre da população, que não ameaça, contudo, a ordem vigente, devido à ausência da confrontação política e dos componentes clássicos das propostas de mudanças mais à esquerda (SINGER, 2009). A política macroeconômica mais conservadora executada nos últimos anos — sustentada nos juros elevados, austeridade fiscal e câmbio flutuante —, somada a uma ação distributiva do Estado, teriam conduzido a uma nova configuração ideológica, provocando um realinhamento da camada de baixa renda, denominada como “subproletariado”, em direção ao presidente Lula. Singer aponta, por um lado, para a possibilidade de o “lulismo” se consolidar para além do PT, ou, por outro lado, de o partido conseguir fazer convergir para a sua política esse segmento do subproletariado, que se somaria ao setor do proletariado organizado, dominante no partido.
Recentemente, uma nova obra, Brasil, entre o passado e o futuro, organizada por Emir Sader e Marco Aurélio Garcia (Ed. Boitempo & Fundação Perseu Abramo), veio se somar a este cenário de análises conjunturais. Diante do atual quadro de escassez destas formas de análise mais sistematizadas sobre o Governo Lula, é meritória a aparição desta obra. Dividida em seis capítulos escritos por intelectuais próximos ou pertencentes ao governo Lula e ao Partido dos Trabalhadores, além de uma entrevista com a ministra-chefe da Casa Civil e candidata Dilma Rousseff, esta obra busca mapear a experiência do governo Lula em diferentes áreas. Como não poderia deixar de resultar em um livro com este objetivo e com o elenco que o conduz, mesclam-se artigos bons, marcados por uma análise mais detalhada dos últimos anos, com outros que atingem resultados menos satisfatórios, sobretudo quando ao papel do analista se substitui o personagem ufanista. Mas, no quadro geral, o resultado é interessante e permite vislumbrar de que maneira setores da intelectualidade próximos ao Governo encaram a dialética conservação-transformação, que teve curso nos últimos oito anos no Brasil.
Emir Sader abre o livro com um artigo intitulado “Brasil, de Getúlio a Lula”, no qual discute algumas similaridades entre estes dois governos, principalmente em relação à prioridade conferida às políticas sociais, à construção de um projeto nacional-desenvolvimentista e à formulação de um discurso popular. Este artigo é curioso, na medida em que mostra uma leitura de um intelectual vinculado ao PT valorizadora da obra de Getúlio Vargas, quando, paradoxalmente, o PT nasce rejeitando o varguismo e sua política populista e nacionalista, que se sobreporia aos interesses classistas vigentes na sociedade. Não obstante esta observação e também um tom demasiadamente otimista, o artigo de Sader tem o mérito de destacar o fato de o governo Lula ser marcado por rupturas e continuidades, caracterizando o que ele denomina como uma “era híbrida”, abrindo novas possibilidades de conquistas caso o projeto ora em curso tenha continuidade.
Nos artigos “O Brasil herdado”, de Jorge Matoso, e “A sociedade pela qual se luta”, de Marcio Pochmann e Guilherme Dias, confere-se maior destaque à comparação entre os governos de FHC e de Lula, buscando destacar, sobretudo no caso do segundo, alguns desafios colocados para os próximos anos no sentido da construção de um novo padrão civilizatório. Matoso se esforça por traçar uma comparação com os anos de FHC, enfatizando as transformações ocorridas nas áreas do emprego, renda e desigualdade, na política habitacional e na questão das privatizações. Já Pochmann e Dias destacam que o recente processo de reconstrução do Estado, acompanhado de políticas macroeconômicas de viabilização da expansão produtiva e de inclusão social, tem permitido ao país voltar a se constituir como fruto de um projeto novo de desenvolvimento de sociedade para todos e, também, como liderança no contexto global. O valor deste artigo diz respeito às sugestões relativas à construção de uma agenda civilizatória nesta “sociedade pós-industrial”, relacionadas à adequação do fundo público para políticas sociais e às transformações no mercado de trabalho, com foco no ingresso mais tardio por parte da juventude no emprego, na educação ao longo da vida, na redução da jornada de trabalho e na expansão das atividades ocupacionais socialmente úteis à sociabilidade.
No artigo “A inflexão do Governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda”, Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza escrevem talvez a melhor análise do livro, buscando demonstrar o fato de o Brasil ter iniciado no Governo Lula uma nova fase de desenvolvimento econômico e social, em que se combinam crescimento econômico e redução nas desigualdades sociais, tendo como característica principal a retomada do Estado no estímulo ao desenvolvimento e no planejamento de longo prazo. Os autores discutem os embates existentes no interior do Governo, procurando enfatizar de que forma, a partir do segundo mandato, passa a prevalecer uma política desenvolvimentista, pautada na adoção de medidas temporárias de estímulo fiscal e monetário para acelerar o crescimento e elevar o potencial produtivo da economia, na aceleração do desenvolvimento social por intermédio da ampliação das transferências de renda e elevação do salário mínimo, bem como no aumento do investimento público e recuperação do papel do Estado no planejamento de longo prazo.
Os outros dois artigos que compõem o livro são escritos pelo ministro Luis Dulci, “Participação e mudança social no Governo Lula”, e pelo assessor de política externa do Presidente da República, Marco Aurélio Garcia, “O lugar do Brasil no mundo: a política externa em um momento de transição”. No primeiro texto, Dulci discute a ampliação da participação popular que teve curso recentemente no país. Para tanto, ele destaca o fato de terem ocorrido no Governo Lula 63 conferências nacionais, que mobilizaram diretamente, em suas várias etapas, mais de 4,5 milhões de pessoas em cerca de 5 mil municípios, além da criação de diversos canais institucionais, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Todas essas modificações teriam aberto caminho para a garantia tanto dos direitos econômicos e sociais “clássicos” — emprego, salário, proteção social, educação e saúde públicas —, quanto dos chamados “novos direitos”, relacionados à igualdade étnica e de gênero, respeito à diversidade sexual, reconhecimento das demandas próprias da juventude, dos idosos e das pessoas com deficiências.
Marco Aurélio Garcia, por sua vez, se detém na análise da política externa do Governo Lula, cuja prioridade, de acordo com ele, foi a aproximação com os países da América do Sul — que permitiu o fortalecimento do Mercosul e a criação de organismos como a Unasul e o Banco do Sul — e o foco na construção de um mundo multipolar. O autor enfatiza os aspectos positivos dessa política — que, ao fim e ao cabo, talvez tenha, de fato, se configurado como uma das áreas de atuação mais progressista do governo —, deixando de lado, contudo, a problematização de assuntos polêmicos, como a questão da repressão dos dissidentes em Cuba.
Para finalizar, há uma entrevista com a ministra Dilma Rousseff, “Um país para 190 milhões de brasileiros”, na qual a candidata tece comparações com o período anterior, destacando quatro movimentos estruturais que teriam diferenciado o Governo Lula, vinculados ao crescimento da economia com estabilidade, à expansão do mercado interno, à reinserção internacional do país e à redefinição das prioridades do gasto público.
Não é nossa pretensão realizar aqui uma análise detalhada e crítica de cada artigo do livro, até mesmo porque ele abarca assuntos diversos, indo desde a política econômica e social, até a política externa, passando pelas mudanças sociais no sentido do aperfeiçoamento dos canais democráticos. O que importa ressaltar é que, a despeito dos méritos existentes na obra, a grande parte dos artigos nela contidos, incluída a entrevista de Dilma Rousseff, ao colocarem ênfase excessiva sobre os aspectos positivos do governo, não tiveram tanto êxito na compreensão deste governo composto por contrários, marcado pela dialética conservação-transformação, que consegue caminhar na corda bamba, sobretudo devido à capacidade de Lula de se equilibrar entre os extremos, arbitrando os conflitos de interesses que emergem na sociedade. Dessa forma, os aspectos positivos que foram transformados sobressaem com maior destaque, ficando para segundo plano a problematização daquilo que permanece estruturalmente e que contribui para manter o país ainda como uma das nações mais desiguais do mundo.
É importante destacar que não se pretende, de forma alguma, negar aqui os avanços significativos que ocorreram nos últimos anos no Brasil, sobretudo a partir do segundo mandato do presidente Lula, no que tange às questões relativas às políticas sociais, à expansão do mercado interno e ao fortalecimento do Estado, com o estabelecimento de programas como, por exemplo, o PAC, o PDE e o Pronasci. Entretanto, a política executada não foi capaz de enfrentar talvez uma das principais tarefas de um governo de esquerda, qual seja, a de oferecer possibilidades concretas de empoderamento da sociedade — sobretudo daqueles setores beneficiados pelos programas sociais e que se identificam com o “lulismo” —, promovendo um efetivo processo de socialização da política e politização da sociedade. Não temos espaço para problematizar este ponto, mas basta, por ora, assinalar o pouco empenho por parte do Executivo na realização de uma reforma política capaz não apenas de moralizar o jogo político, mas de ampliar os mecanismos democráticos de deliberação. Nos últimos anos, a despeito do aumento de canais institucionais de participação — como demonstrando no artigo de Luis Dulci —, da ascensão social de milhares de pessoas em decorrência das políticas sociais e do fortalecimento de alguns movimentos sociais — em especial, dos sindicatos —, não ocorreu um processo contínuo de organização e animação da vida associativa e popular, de modo que os temas e atores emergentes de baixo pudessem pressionar e disputar os rumos políticos do país na esfera pública.
Apesar desses aspectos, é importante que este livro tenha vindo à tona, sobretudo para que sejam estimuladas a elaboração de novas análises conjunturais mais sistemáticas que sejam capazes de compreender com maior clareza o que representou não apenas o “lulismo”, mas também a experiência do maior partido de esquerda do país no poder, e qual o legado de ambos para o país, para a esquerda, em geral, e para os movimentos sociais e o Partido dos Trabalhadores, em particular. Ademais, é fundamental que essas análises tragam como pano de fundo a investigação sobre o que significa um projeto de esquerda no mundo contemporâneo e quais foram os avanços ocorridos nos últimos anos que devem ser aprofundados e o que ainda necessita ser transformado.
Nesse sentido, fica aqui uma provocação: apesar da necessidade do fortalecimento do Estado, como decorrência da execução das políticas neoliberais da década de 1990, os setores da esquerda estariam condenados ad eternum a um discurso “estatista”, cuja agenda máxima se encerra em um programa nacional-desenvolvimentista construído por cima? Por mais importante e avançada que seja esta agenda — como o comprovou a recente crise financeira —, ela não dá conta de oferecer o caminho possível para uma sociedade socialista. Esse debate acerca do projeto, das táticas e estratégias para a construção de uma política que implique não apenas o robustecimento do Estado, mas também a mobilização da vida associativa no país, ainda necessita de uma maior expansão não apenas por parte da esquerda agora no poder, mas dos setores progressistas da sociedade como um todo.
As eleições estão se aproximando. As candidaturas colocadas até o presente momento, em especial aquelas favoritas, representadas por Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), não apontaram ainda para esse caminho. Elaborando seus discursos do ponto de vista único e exclusivo do plano do desenvolvimento nacional — o que, reitero, é ainda de suma importância —, até agora não foram capazes de apresentar uma plataforma política que, sem abdicar do fortalecimento do Estado e do combate intenso às desigualdades sociais ainda vigentes, seja capaz de ampliar os espaços para o exercício da soberania popular, implicando uma extensão cada vez mais progressiva da democracia política e social no país.
Fernando Perlatto é doutorando em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/Iuperj).
Bibliografia
BRAUDEL, Fernand (1976). “A longa duração”. In: ---------. História e ciências sociais. 2. ed. Lisboa: Presença, p. 7-70.
CARDOSO, Fernando Henrique (2009). “Para onde vamos?”. O Globo, 02/11/2009.
GRAMSCI, Antonio (2000). Cadernos do cárcere – V. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
OLIVEIRA, Francisco (2003). Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo.
---------- (2007). “Hegemonia às avessas”. Revista Piauí, n. 4, janeiro, p. 56-7.
---------- (2009). “Avesso do avesso”. Revista Piauí, n. 37, outubro, p. 60-2.
WERNECK VIANNA, Luiz (2009a). “A viagem (quase) redonda do PT”. Jornal de Resenhas, jul., p. 12-4.
---------- (2009b). “Tópicos para um debate sobre conjuntura”. Política Democrática, n. 25, p. 16-9.
Interpretar o país tem sido uma prática constante da inteligência brasileira, desde o momento da nossa hora inaugural. Basta pensar, para tanto, nas análises dos construtores do império — como José Bonifácio e Visconde do Uruguai —, que, mais do que elaborarem estudos pormenorizados sobre o país, construíram análises que buscavam compreender nossa realidade para uma intervenção política. Essa forma de interpretar o país tornou-se uma marca da inteligência brasileira no decorrer da história. Atuando em Academias e Institutos, na universidade, nos partidos, ou inseridos no aparelho de Estado, a intelectualidade brasileira buscou se inscrever na esfera pública, formulando e disputando interpretações, análises e projetos sobre o futuro da nação, desempenhando papel de destaque na nossa modernização. Essa forma de interpretação sobre o país foi aqui mobilizada, historicamente, sobretudo como um exercício normativo, visto que buscou não apenas compreender, mas produzir inspiração para intervir e modelar a nossa sociedade.
Não se trata de uma tarefa fácil esta de construir uma análise da conjuntura política do momento que se preocupe não somente com os acontecimentos comezinhos do dia a dia político, mas conjugue a investigação dos mesmos com a interpretação do movimento mais amplo das estruturas. O desafio se coloca no sentido de inserir os fatos habituais em uma linha explicativa alargada, que ultrapasse o cotidiano da política e suas disputas menores. A análise de conjuntura, dessa maneira, não é um exercício de menor relevância, mesmo que não exija um aparato metodológico tão complexo quanto exigiriam os padrões positivistas, o que se por um lado é sua fraqueza, dirão os empiricistas, por outro acaba sendo uma vantagem para aqueles que se aventuram nesta seara, justamente por permitir a realização de voos analíticos mais amplos, sem as amarras colocadas pelos rigores “científicos”.
O principal desafio para uma análise de conjuntura consiste na tarefa de pensar e analisar o fato ao mesmo tempo em que ocorre, de tentar conciliar a reflexão com o que pari passu se dá no “mundo real”. A análise de conjuntura traz em seu bojo alguns problemas complexos, como, por exemplo, o da articulação entre o papel do ator — seja ele individual ou coletivo — e a estrutura. O velho problema da capacidade ou incapacidade de o sujeito intervir nos fatos, a despeito das forças estruturais que regem a sociedade. Uma boa análise de conjuntura tem de dar conta de inserir os desafios daquele momento específico, os acontecimentos, em uma perspectiva de “longa duração”, na linguagem do historiador Fernand Braudel (1976), atenta ao movimento mais geral que rege a sociedade, percebendo aquilo que permanece e aquilo que se transforma.
A análise de conjuntura quando bem realizada torna-se capaz de permitir a explicação para a intervenção política, na medida em que, ao organizar analiticamente o fluxo dos acontecimentos, logra aumentar as potencialidades de êxito da ação daqueles que desejam alterar determinada ordem ou conservar o status quo. Ela permite mapear o terreno no qual as forças sociais travam as disputas políticas, bem como enfrentam os nós górdios que atravancam o andamento da mudança. Assim, abre possibilidades para a atuação dos sujeitos da transformação naqueles movimentos que Gramsci denominou de “grande política”, que compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, defesa ou conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais, em contraposição à “pequena política”, relacionada às questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida, em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política (GRAMSCI, 2000: 21-2).
A despeito dessa importância conferida à análise de conjuntura e não obstante o fato de ela se configurar como uma marca característica da inteligência brasileira, fato é que os últimos anos foram caracterizados por uma escassez relativa desta forma de análise. Não se trata aqui de procurar uma explicação para isso e não pretendo entrar no mérito da tão propalada polêmica do “silêncio dos intelectuais”, que ganhou espaço significativo na imprensa brasileira em 2005, quando dos escândalos relacionados aos esquemas de corrupção, comumente conhecidos como “mensalão”. O que se quer ressaltar aqui é que ao movimento dos fatos não houve uma correspondência de análises capazes de darem conta da complexidade do movimento de conservação-transformação que teve curso no Brasil nos últimos oito anos. A impressão que se tem é a de que o movimento conjuntural, impulsionado pela realização de uma política — com seus erros e acertos — movida muito mais pela percepção, pelo instinto e pela habilidade, não foi acompanhado por uma mediação reflexiva, o que teve claras consequências para a própria execução desta ação política.
Seria injusto, contudo, generalizar esse quadro. Não é possível adentrar nesse campo sem que mencionemos determinas análises conjunturais realizadas nos últimos anos, a partir de diferentes posições políticas, fundamentais para uma compreensão mais pormenorizada do que vêm representando os oito anos do Governo Lula para a história do país. Desde já é importante ressaltar que não pretendo esgotar a enumeração das mesmas, mas apenas destacar algumas que, a meu ver, parecem interessantes, no sentido de desvendar diferentes possibilidades de leitura de um período intrinsecamente marcado pela contradição. Para tanto, vale destacar as análises de conjuntura realizadas por Francisco de Oliveira, cuja caracterização do governo Lula como uma “hegemonia às avessas” (OLIVEIRA, 2007) — na medida em que a classe dominante aceitaria ceder o discurso político aos dominados, que Lula, em tese, representaria, sob condição de que os fundamentos da sua dominação não fossem questionados — foi radicalizada recentemente, alcunhada de “avesso do avesso” (OLIVEIRA, 2009), em decorrência da negação da política, que, cada vez mais administrativa e espetacularizada, não mais passaria pelo conflito de classes. O “lulismo”, dessa forma, seria a “vanguarda do atraso” e o “atraso da vanguarda”.
Luiz Werneck Vianna, por sua vez, vem desenvolvendo algumas análises nos últimos anos, que podem ser sintetizadas em sua caracterização do governo do PT como uma espécie de “viagem quase redonda”, pelo fato de o partido ter realizado uma releitura da sua própria história ao chegar ao governo, revalorizando o nacional-desenvolvimentismo, que antes tanto criticara, sem, contudo, reinventá-lo em uma chave progressista (WERNECK VIANNA, 2009a). As forças que deveriam apresentar a descontinuidade se tornaram as portadoras da continuidade, trazendo de volta a lógica política dos processos de modernização, com as mudanças sendo processadas pelo alto, tendo a consequência da subsunção do social ao Estado, que passa a processar e arbitrar os conflitos entre classes e frações de classes no interior do governo. Mais recentemente, Werneck Vianna retomou sua crítica à ordem grã-burguesa hoje vigente no país, que, embora contemplando os interesses de diversos segmentos da sociedade, tem sido marcada pela captura da política pelo Estado, sob a liderança de um chefe carismático, e pela condução de um processo de modernização a partir do alto, que, a despeito da retórica fraterna, não traz consigo o moderno, que suporia autonomia dos sujeitos na trama do social (WERNECK VIANNA, 2009b).
No campo da oposição, vale lembrar a análise de conjuntura realizada recentemente por Fernando Henrique Cardoso, publicada em diversos jornais do país, em artigo intitulado “Para onde vamos?”, que, não obstante vários equívocos, teve o mérito de superar o recorrente silêncio da oposição. O ex-presidente acusa o DNA do “autoritarismo popular” do atual governo por ir minando progressivamente o espírito da democracia constitucional, que suporia regras, informação, participação, representação e deliberação consciente. Cardoso retoma a crítica realizada outrora por Francisco de Oliveira (2003) à “nova classe” da burocracia sindical aninhada no Estado, tendo como base os fundos de pensão, todos fundidos nos altos-fornos do Tesouro, para proceder à sua crítica ao bloco que denomina como “subperonismo lulista”, do qual participariam partidos fracos, sindicatos fortes e fundos de pensão em convergência com os interesses de um partido no governo; um bloco para o qual atrairiam sócios privados privilegiados (CARDOSO, 2009).
Outras análises de conjuntura têm optado por encarar o Governo Lula a partir de um viés mais positivo, destacando os avanços que ocorreram nos últimos anos, não obstante apontem as contradições e os desafios no sentido de aprofundar as transformações ora em curso. Em um instigante artigo intitulado “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, publicado na revista Novos Estudos, o cientista político e ex-porta voz da presidência, André Singer, apontou o “lulismo” como a execução de um projeto político marcado pela redistribuição de renda ao setor mais pobre da população, que não ameaça, contudo, a ordem vigente, devido à ausência da confrontação política e dos componentes clássicos das propostas de mudanças mais à esquerda (SINGER, 2009). A política macroeconômica mais conservadora executada nos últimos anos — sustentada nos juros elevados, austeridade fiscal e câmbio flutuante —, somada a uma ação distributiva do Estado, teriam conduzido a uma nova configuração ideológica, provocando um realinhamento da camada de baixa renda, denominada como “subproletariado”, em direção ao presidente Lula. Singer aponta, por um lado, para a possibilidade de o “lulismo” se consolidar para além do PT, ou, por outro lado, de o partido conseguir fazer convergir para a sua política esse segmento do subproletariado, que se somaria ao setor do proletariado organizado, dominante no partido.
Recentemente, uma nova obra, Brasil, entre o passado e o futuro, organizada por Emir Sader e Marco Aurélio Garcia (Ed. Boitempo & Fundação Perseu Abramo), veio se somar a este cenário de análises conjunturais. Diante do atual quadro de escassez destas formas de análise mais sistematizadas sobre o Governo Lula, é meritória a aparição desta obra. Dividida em seis capítulos escritos por intelectuais próximos ou pertencentes ao governo Lula e ao Partido dos Trabalhadores, além de uma entrevista com a ministra-chefe da Casa Civil e candidata Dilma Rousseff, esta obra busca mapear a experiência do governo Lula em diferentes áreas. Como não poderia deixar de resultar em um livro com este objetivo e com o elenco que o conduz, mesclam-se artigos bons, marcados por uma análise mais detalhada dos últimos anos, com outros que atingem resultados menos satisfatórios, sobretudo quando ao papel do analista se substitui o personagem ufanista. Mas, no quadro geral, o resultado é interessante e permite vislumbrar de que maneira setores da intelectualidade próximos ao Governo encaram a dialética conservação-transformação, que teve curso nos últimos oito anos no Brasil.
Emir Sader abre o livro com um artigo intitulado “Brasil, de Getúlio a Lula”, no qual discute algumas similaridades entre estes dois governos, principalmente em relação à prioridade conferida às políticas sociais, à construção de um projeto nacional-desenvolvimentista e à formulação de um discurso popular. Este artigo é curioso, na medida em que mostra uma leitura de um intelectual vinculado ao PT valorizadora da obra de Getúlio Vargas, quando, paradoxalmente, o PT nasce rejeitando o varguismo e sua política populista e nacionalista, que se sobreporia aos interesses classistas vigentes na sociedade. Não obstante esta observação e também um tom demasiadamente otimista, o artigo de Sader tem o mérito de destacar o fato de o governo Lula ser marcado por rupturas e continuidades, caracterizando o que ele denomina como uma “era híbrida”, abrindo novas possibilidades de conquistas caso o projeto ora em curso tenha continuidade.
Nos artigos “O Brasil herdado”, de Jorge Matoso, e “A sociedade pela qual se luta”, de Marcio Pochmann e Guilherme Dias, confere-se maior destaque à comparação entre os governos de FHC e de Lula, buscando destacar, sobretudo no caso do segundo, alguns desafios colocados para os próximos anos no sentido da construção de um novo padrão civilizatório. Matoso se esforça por traçar uma comparação com os anos de FHC, enfatizando as transformações ocorridas nas áreas do emprego, renda e desigualdade, na política habitacional e na questão das privatizações. Já Pochmann e Dias destacam que o recente processo de reconstrução do Estado, acompanhado de políticas macroeconômicas de viabilização da expansão produtiva e de inclusão social, tem permitido ao país voltar a se constituir como fruto de um projeto novo de desenvolvimento de sociedade para todos e, também, como liderança no contexto global. O valor deste artigo diz respeito às sugestões relativas à construção de uma agenda civilizatória nesta “sociedade pós-industrial”, relacionadas à adequação do fundo público para políticas sociais e às transformações no mercado de trabalho, com foco no ingresso mais tardio por parte da juventude no emprego, na educação ao longo da vida, na redução da jornada de trabalho e na expansão das atividades ocupacionais socialmente úteis à sociabilidade.
No artigo “A inflexão do Governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda”, Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza escrevem talvez a melhor análise do livro, buscando demonstrar o fato de o Brasil ter iniciado no Governo Lula uma nova fase de desenvolvimento econômico e social, em que se combinam crescimento econômico e redução nas desigualdades sociais, tendo como característica principal a retomada do Estado no estímulo ao desenvolvimento e no planejamento de longo prazo. Os autores discutem os embates existentes no interior do Governo, procurando enfatizar de que forma, a partir do segundo mandato, passa a prevalecer uma política desenvolvimentista, pautada na adoção de medidas temporárias de estímulo fiscal e monetário para acelerar o crescimento e elevar o potencial produtivo da economia, na aceleração do desenvolvimento social por intermédio da ampliação das transferências de renda e elevação do salário mínimo, bem como no aumento do investimento público e recuperação do papel do Estado no planejamento de longo prazo.
Os outros dois artigos que compõem o livro são escritos pelo ministro Luis Dulci, “Participação e mudança social no Governo Lula”, e pelo assessor de política externa do Presidente da República, Marco Aurélio Garcia, “O lugar do Brasil no mundo: a política externa em um momento de transição”. No primeiro texto, Dulci discute a ampliação da participação popular que teve curso recentemente no país. Para tanto, ele destaca o fato de terem ocorrido no Governo Lula 63 conferências nacionais, que mobilizaram diretamente, em suas várias etapas, mais de 4,5 milhões de pessoas em cerca de 5 mil municípios, além da criação de diversos canais institucionais, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Todas essas modificações teriam aberto caminho para a garantia tanto dos direitos econômicos e sociais “clássicos” — emprego, salário, proteção social, educação e saúde públicas —, quanto dos chamados “novos direitos”, relacionados à igualdade étnica e de gênero, respeito à diversidade sexual, reconhecimento das demandas próprias da juventude, dos idosos e das pessoas com deficiências.
Marco Aurélio Garcia, por sua vez, se detém na análise da política externa do Governo Lula, cuja prioridade, de acordo com ele, foi a aproximação com os países da América do Sul — que permitiu o fortalecimento do Mercosul e a criação de organismos como a Unasul e o Banco do Sul — e o foco na construção de um mundo multipolar. O autor enfatiza os aspectos positivos dessa política — que, ao fim e ao cabo, talvez tenha, de fato, se configurado como uma das áreas de atuação mais progressista do governo —, deixando de lado, contudo, a problematização de assuntos polêmicos, como a questão da repressão dos dissidentes em Cuba.
Para finalizar, há uma entrevista com a ministra Dilma Rousseff, “Um país para 190 milhões de brasileiros”, na qual a candidata tece comparações com o período anterior, destacando quatro movimentos estruturais que teriam diferenciado o Governo Lula, vinculados ao crescimento da economia com estabilidade, à expansão do mercado interno, à reinserção internacional do país e à redefinição das prioridades do gasto público.
Não é nossa pretensão realizar aqui uma análise detalhada e crítica de cada artigo do livro, até mesmo porque ele abarca assuntos diversos, indo desde a política econômica e social, até a política externa, passando pelas mudanças sociais no sentido do aperfeiçoamento dos canais democráticos. O que importa ressaltar é que, a despeito dos méritos existentes na obra, a grande parte dos artigos nela contidos, incluída a entrevista de Dilma Rousseff, ao colocarem ênfase excessiva sobre os aspectos positivos do governo, não tiveram tanto êxito na compreensão deste governo composto por contrários, marcado pela dialética conservação-transformação, que consegue caminhar na corda bamba, sobretudo devido à capacidade de Lula de se equilibrar entre os extremos, arbitrando os conflitos de interesses que emergem na sociedade. Dessa forma, os aspectos positivos que foram transformados sobressaem com maior destaque, ficando para segundo plano a problematização daquilo que permanece estruturalmente e que contribui para manter o país ainda como uma das nações mais desiguais do mundo.
É importante destacar que não se pretende, de forma alguma, negar aqui os avanços significativos que ocorreram nos últimos anos no Brasil, sobretudo a partir do segundo mandato do presidente Lula, no que tange às questões relativas às políticas sociais, à expansão do mercado interno e ao fortalecimento do Estado, com o estabelecimento de programas como, por exemplo, o PAC, o PDE e o Pronasci. Entretanto, a política executada não foi capaz de enfrentar talvez uma das principais tarefas de um governo de esquerda, qual seja, a de oferecer possibilidades concretas de empoderamento da sociedade — sobretudo daqueles setores beneficiados pelos programas sociais e que se identificam com o “lulismo” —, promovendo um efetivo processo de socialização da política e politização da sociedade. Não temos espaço para problematizar este ponto, mas basta, por ora, assinalar o pouco empenho por parte do Executivo na realização de uma reforma política capaz não apenas de moralizar o jogo político, mas de ampliar os mecanismos democráticos de deliberação. Nos últimos anos, a despeito do aumento de canais institucionais de participação — como demonstrando no artigo de Luis Dulci —, da ascensão social de milhares de pessoas em decorrência das políticas sociais e do fortalecimento de alguns movimentos sociais — em especial, dos sindicatos —, não ocorreu um processo contínuo de organização e animação da vida associativa e popular, de modo que os temas e atores emergentes de baixo pudessem pressionar e disputar os rumos políticos do país na esfera pública.
Apesar desses aspectos, é importante que este livro tenha vindo à tona, sobretudo para que sejam estimuladas a elaboração de novas análises conjunturais mais sistemáticas que sejam capazes de compreender com maior clareza o que representou não apenas o “lulismo”, mas também a experiência do maior partido de esquerda do país no poder, e qual o legado de ambos para o país, para a esquerda, em geral, e para os movimentos sociais e o Partido dos Trabalhadores, em particular. Ademais, é fundamental que essas análises tragam como pano de fundo a investigação sobre o que significa um projeto de esquerda no mundo contemporâneo e quais foram os avanços ocorridos nos últimos anos que devem ser aprofundados e o que ainda necessita ser transformado.
Nesse sentido, fica aqui uma provocação: apesar da necessidade do fortalecimento do Estado, como decorrência da execução das políticas neoliberais da década de 1990, os setores da esquerda estariam condenados ad eternum a um discurso “estatista”, cuja agenda máxima se encerra em um programa nacional-desenvolvimentista construído por cima? Por mais importante e avançada que seja esta agenda — como o comprovou a recente crise financeira —, ela não dá conta de oferecer o caminho possível para uma sociedade socialista. Esse debate acerca do projeto, das táticas e estratégias para a construção de uma política que implique não apenas o robustecimento do Estado, mas também a mobilização da vida associativa no país, ainda necessita de uma maior expansão não apenas por parte da esquerda agora no poder, mas dos setores progressistas da sociedade como um todo.
As eleições estão se aproximando. As candidaturas colocadas até o presente momento, em especial aquelas favoritas, representadas por Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), não apontaram ainda para esse caminho. Elaborando seus discursos do ponto de vista único e exclusivo do plano do desenvolvimento nacional — o que, reitero, é ainda de suma importância —, até agora não foram capazes de apresentar uma plataforma política que, sem abdicar do fortalecimento do Estado e do combate intenso às desigualdades sociais ainda vigentes, seja capaz de ampliar os espaços para o exercício da soberania popular, implicando uma extensão cada vez mais progressiva da democracia política e social no país.
Fernando Perlatto é doutorando em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/Iuperj).
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