Ideia
da liberdade de expressão nasceu do ceticismo moderno; quem detém a verdade e
quem são seus juízes?
Por
um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes
sociais forjariam uma imensa ágora digital. Ainda do projeto Gwan, que
conheci nos anos 1990, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão
de um velho prédio no bairro Gótico. A ideia era forjar música misturando sons
de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas
do ano 2000.
As
redes funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e as
regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí diálogo e
aproximação dos divergentes.
O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas.
Intuo
que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É
o que sinalizam os desligamentos recentes. Eles envolvem um claro juízo
político e vão muito além da punição que precisa ser feita, dentro da lei, para
quem promove violência, morte, suicídio, ódio racial ou religioso e afins, seja
de que lado político for.
As
redes agiram assim porque podem. São empresas privadas, suas regras, vagas e
passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos
confiar na sua curadoria e "bom senso" e que cortar estas e não
aquelas contas seria sempre o melhor para a civilização e para democracia.
Não
sei por que (talvez seja a idade), tornei-me cético demais para acreditar
nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de
expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a
"verdade" e a infalibilidade de seus juízes.
É
o sentido da frase desconfiada da chanceler Angela Merkel, dizendo
"problemático" o banimento do presidente americano das redes e
afirmando a liberdade de expressão como um "bem fundamental", a
ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas.
É
provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão
incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para
preservar seu quase monopólio, e o estrangulamento
do Parler é mostra disso. A longo prazo, não creio que seja possível.
Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria
do mundo.
Há
algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua
crítica à censura de livros, na Inglaterra do século 17. A liberdade corre como
água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas,
como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth
Brown, "os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora,
apenas vão para o subsolo".
Doses
crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da
ladeira escorregadia. É
preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa
de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que
as coisas funcionam em nossas sociedades abertas.
A
ideia das ágoras universais vai naufragando ao sabor da radicalização e
intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido,
desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso.
A
melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no zigue-zague da
história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali.
Mas não pode desligar o cérebro das pessoas nem o seu direito de pensar com a
própria cabeça.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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