domingo, 26 de dezembro de 2021

Dorrit Harazim: Uma pausa

O Globo

Aproveita-se aqui a janela dupla Festas/Ano-Novo, quando tudo se atropela e ao mesmo tempo vai parando, para dar folga ao noticiário que tanto nos atormentou em 2021. Hoje nenhum fato ou figura política frequentará esta coluna, que nem sequer roteiro tem, coitada. Ela é uma mera pausa — cheia de interrogações sobre o que somos, o que é sempre saudável.

Se a biologia deu ao ser humano um cérebro, quem transforma o cérebro em mente é a vida — e a vida, aprendemos cedo, é danada de difícil de mapear. Do cérebro e de seus 86 milhões de neurônios, cada um conectado a outros milhares que se entrecruzam numa centena de trilhões de sinapses, já se sabem montes. A ciência, a medicina, a biotecnologia e a saúde universal agradecem a essa exploração instigante. Em contrapartida, há mais de 5 mil anos poetas e filósofos, doutores do divino e das ciências procuram destrinchar todos os mistérios da mente humana. Em vão. O que também não deixa de ser apaixonante.

O ensaísta americano Lewis Lapham debruçou-se sobre o tema em 2018, numa edição especial da revista de humanidades que dirige, a Lapham’s Quarterly. “A mente é nossa consciência”, resumiu ele , “e, embora ela seja um fato fundamental da existência humana, trata-se de uma experiência subjetiva, que escapa a medições científicas.” Tem sido mais fácil medir com precisão a intensidade da luz solar do que explicar o universo privado onde reina a mente humana. É ali que desabrocha ou se atrofia o caráter de uma pessoa. Ali, pensar é função, viver é o desafio.

Estes quase dois anos de pandemia planetária com distanciamento social nos deram a rara oportunidade de encarar com um mínimo de honestidade a autoimagem que cada um constrói para si. E, quem sabe, conseguir redefinir o que fomos até agora. Tarefa difícil, visto que a autoilusão é tão parte das ferramentas humanas quanto os dedos das mãos e dos pés. Uma pena, pois é pouco provável que tamanha oportunidade de mergulhar numa investigação introspectiva se repita em vidas já maduras.

Tudo indica que boa parte dos bípedes não sairá muito diferente do que quando entrou no retiro forçado pela Covid-19. São, sem sabê-lo, adeptos de um ditado célebre cunhado por Kurt Vonnegut, o falecido escritor americano que da vida entendia um bocado : “Somos o que pretendemos ser, por isso devemos ser muito cuidadosos na escolha de quem pretendemos ser”.

Houve os que não tiveram medo da autocognição, nem de dar chance a um viver diferente. Podem ser poucos, mas é com eles que vale a pena cultivar a ideia de um futuro possível. Foi o líder da independência da Índia, Mahatma Gandhi, quem observou que nossos pensamentos precedem nossas palavras, nossas palavras se transformam em atos, nossos atos formatam nosso caráter, e nosso caráter passa a ser nosso destino. Ou seja, nosso destino começa na mente. Quem, há quase dois anos, viu o desenrolar de várias epidemias simultâneas (o vírus, a incerteza, o medo) e nunca pensou em mudar o mundo desligou-se de forma terminal da tomada humana. Virou apêndice sem utilidade para qualquer sociedade.

Em “Alquimia da mente”, a poeta naturalista Diane Ackerman escreve uma ode ao fato de cada um de nós carregar no topo do corpo um universo completo de onde jorram trilhões de sensações, pensamentos e sonhos. “Cérebro e mente não são a mesma coisa. A mente habita o cérebro, algo como um fantasma dentro de uma máquina. A mente é a miragem reconfortante do órgão físico — uma experiência, não uma entidade, uma essência, não uma substância. A genialidade da mente humana é seu talento para a reflexão.” E para a imaginação, acrescente-se. A arte da mente está em transcender as múltiplas limitações do mundo e explorar o impossível.

Então fica o convite a quem quiser se juntar à aventura de encarar 2022 como última chance. Chance de quê? Do privilégio de poder pensar e sonhar, da obrigação de ouvir e falar, do imperativo de ser menos medíocre do que fomos neste ano.


Fica o convite para encarar 2022 como última chance. Do privilégio de poder pensar e sonhar, da obrigação de ouvir e falar, do imperativo de ser menos medíocre do que fomos neste ano

 

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