quarta-feira, 22 de março de 2023

Jessé Souza* - Por que a renovação do STF é tão importante?

O Estado de S. Paulo

Este ano, ao menos uma das vagas a serem preenchidas deve ir para um representante do povo excluído da casta jurídica e que se constitui em sua principal vítima

 

Se analisarmos o funcionamento dos Três Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, que regem a sociedade brasileira, veremos facilmente que foram construídos, com precisão de alfaiate, para manter 80% da sociedade – em sua esmagadora maioria mestiça, negra e pobre – alijada, na prática da vida real, de qualquer chance de ascensão social e vida digna.

Este esquema é garantido no Parlamento pela fragmentação de interesses, pelo peso do dinheiro nas eleições e pelo poder de mando local das elites rurais. No Judiciário, o esquema elitista se baseia na criação de uma casta jurídica com altos salários, apartada da sociedade, uma espécie de nobreza de Estado, como os mandarins chineses, quase toda branca e, se possível, com sobrenome europeu. Nas unidades federativas, a mesma casta jurídica se reproduz graças a linhagens centenárias, que passam de pai para filho, como um privilégio de sangue. No Executivo, finalmente, o esquema elitista logrou se reproduzir graças à construção de uma imprensa privada e venal, de propriedade particular da mesma elite que parasita a sociedade, que é responsável pela conveniente criminalização de qualquer liderança popular – pensemos em Vargas, Jango, Lula e Dilma – que o sufrágio universal, o verdadeiro calcanhar de Aquiles da elite brasileira, leve ao poder de Estado. O pacto elite/imprensa cria, na prática, a “cultura de golpes de Estado”, que vige no Brasil já há cem anos, pelo uso seletivo, ou simplesmente mafioso, do falso moralismo do combate à corrupção.

É apenas a partir deste pano de fundo, que espelha um racismo de classe e de raça seculares, que a renovação do Supremo Tribunal Federal (STF) este ano ganha importância. Seria um dado de alta relevância simbólica e política ter, no Supremo Tribunal, um representante precisamente do povo pobre e negro, secularmente não apenas excluído da casta jurídica, mas também a sua vítima preferencial. Seria um sinal de que é desejável e possível mudar.

É verdade que, num país onde impera até hoje a lei social do “embranquecimento”, a qual exige do negro, para ascender individualmente, o compromisso com a defesa dos valores do opressor, especialmente da riqueza, mas também do menosprezo a tudo o que é popular, o simples fato de ser negro não basta. Infelizmente, boa parte dos negros que ascendem internaliza, quase sempre inconscientemente, os mesmos valores elitistas que reproduzem o racismo sob máscaras reluzentes, como, por exemplo, do falso moralismo do combate à corrupção, cuja real função é precisamente criminalizar a soberania popular e o voto da maioria de negros e mestiços e perseguir seletivamente seus representantes. O Brasil, afinal, aprendeu a mascarar seu racismo como se fosse defesa da moralidade pública. Essa foi a verdadeira modernização brasileira do seu passado escravocrata.

De resto, são os negros as principais vítimas de um sistema de (in)justiça que, também secularmente, atribui como crime simplesmente aquilo que o negro faz: sua música, sua dança, sua religiosidade e seus hábitos cotidianos. Enquanto os grandes especuladores roubam o futuro de milhões e são exaltados como grandes negociantes, são sempre os negros condenados a penas de 10 anos ou 15 anos por crimes leves, ou mortos pela polícia em execução sumária. 40% das mulheres e 20% dos homens que superlotam as cadeias brasileiras estão lá por crimes relativos à maconha, uma droga cada vez mais aceita e, inclusive, receitada em muitos lugares. Também a demonização da maconha, droga recreativa dos escravos, é produto do racismo secular de considerar crime tudo o que o negro faz. É este sistema perverso que precisa mudar.

Temos, sem dúvida, grandes juristas comprometidos com a Constituição cidadã, como Cristiano Zanin, Rubens Casara, Pedro Serrano ou Luis Carlos Valois, para citar apenas alguns. Qualquer deles honraria o Supremo com sua presença. Mas acredito que ao menos uma das duas vagas a serem preenchidas este ano deva ir para um representante do povo secularmente excluído da casta jurídica e que se constitui, inclusive, em sua principal vítima. Temos, felizmente, também grandes nomes aqui. E o primeiro que vem à minha cabeça é o do juiz André Nicolitt. Não apenas por ser negro, mas por ser um filho do povo pobre que jamais esqueceu suas origens, como prova toda uma história de vida dedicada às causas populares e à defesa da Constituição.

Se é verdade que um negro “embranquecido”, que partilha dos valores do opressor, num cargo de poder é mais um desserviço que uma ajuda à causa popular, um negro consciente e comprometido com as lutas populares é uma ajuda incomensurável, posto que exemplo a ser seguido por muitos. A necessária mudança de um paradigma racista que se mantém, no “racismo cordial brasileiro”, nas suas máscaras – a corrupção como atributo popular e a criminalização do negro em geral – para continuar vivo fingindo que morreu exige, além de esclarecimento da esfera pública, atos simbólicos de grande repercussão. E “desembranquecer” a casta jurídica elitista é uma necessidade urgente.

*Escritor e sociólogo

4 comentários:

Anônimo disse...

Ia bem até mostrar a que veio: tentar 'manobrar' uma indicação.
Fedeu. Escureceu.

Anônimo disse...

Será que o juiz sugerido neste artigo é tão complacente com a corrupção e as drogas quanto o autor do texto? Jessé é um escritor bastante original e corajoso, mas não gosto da sua despreocupação com a corrupção e as drogas.

Anônimo disse...

O anonikl acima dwve ser uma anta, no minimo. Jesse nao é contra o combate a corrupcao anta de teta, é contra o falso moralismo que fqzrm uso desse subterfugio da corrupcao.

Anônimo disse...

O ingênuo anônimo acima está bem feliz com a retórica do Jessé que minimiza de todas as formas as gigantescas corrupções petistas. Ambos passam os paninhos juntos?