Folha de S. Paulo
Identitarismo racial almeja fazer do Brasil
cópia de modelo social americano
Acendam as fogueiras inquisitoriais! O
título abre-se com uma palavra classificada como blasfema pelos sacerdotes da
religião do "racismo estrutural":
"Mestiçagem, Identidade e Liberdade". O autor, caluniado
sistematicamente nesta Folha, é o alvo principal da seita Jocevir
(Jornalistas pela Censura Virtuosa): Antonio Risério.
Na síntese de Roberto Mangabeira Unger,
autor da apresentação, o livro é "uma análise do papel da mestiçagem na
formação do povo brasileiro" e uma crítica da "política identitária
dessa pseudoesquerda" que "abriu espaço para as guerras culturais da
direita". O ensaio contém material abundante para reflexão, debate e
discordância. Mas seu compasso rigoroso ilumina diferenças cruciais entre as
experiências históricas de Brasil e EUA –e, por essa via, desnuda a finalidade
política do identitarismo racial.
O rigor está numa distinção conceitual. Risério: "reservo a miscigenação para designar processos de cruzamento genético", enquanto "a mestiçagem só se manifesta a partir do momento em que a miscigenação é reconhecida social e culturalmente". Há miscigenação em todas as sociedades, pois os genes humanos entrecruzaram-se ao longo de milênios. Nem todas, porém, admitem essa realidade.
Os EUA são,
obviamente, miscigenados –mas as leis de
segregação impostas após o fim da escravidão instalaram o mito
da pureza racial, fabricando a imagem de uma nação bicolor. O Brasil, pelo
contrário, celebrou a mestiçagem– ao menos até agora. O identitarismo racial,
um contrabando das ideologias predominantes nos EUA, é um projeto de negação
tardia da mestiçagem e um experimento de engenharia social que almeja fazer do
Brasil uma cópia do modelo americano.
Só se avança nesse empreendimento pela
calúnia da miscigenação, exibida por uma historiografia caricatural como
incomensurável estupro coletivo de negras escravizadas por brancos
escravizadores. As violências –e estupros– do Brasil escravista não são
novidade: Gilberto
Freyre descreveu-os em pungente detalhe. Contudo, nosso passado
é bem mais complexo que isso e as dores das opressões étnicas perpassam quase
todas as histórias nacionais. A invocação do "estupro coletivo"
destina-se, apenas, a justificar leis capazes de separar os brasileiros em duas
raças estanques.
A produção política de "raças
puras" manifesta-se, no Brasil, pela supressão estatal da mestiçagem: a
maioria das pessoas autodeclara-se "parda", mas os registros oficiais
só admitem a existência de "brancos" ou "negros" (com
franjas minúsculas de "amarelos" e "indígenas"). Risério
não cai na armadilha de operar no campo ideológico e semântico racialista,
sugerindo o reconhecimento de uma paradoxal "raça mestiça". No lugar
disso, reafirma a mestiçagem universal dos brasileiros de todas as cores. É
essa mensagem antirracista que enfurece a "pseudoesquerda"
identitária.
O livro denuncia a idiotia do senso comum.
A tal da "elite branca", suposta campeã do racismo, encampa a
doutrina do identitarismo racial ou, no mínimo, revela-se indiferente diante
dela. As provas estão em leis votadas pelo Congresso, em iniciativas empresariais,
nos novos dogmas acadêmicos, no discurso dominante dos veículos de imprensa.
Por outro lado, as políticas racialistas cindem a sociedade por baixo,
fomentando um racismo popular que nutre o voto na extrema direita e no
fundamentalismo religioso. Nesse ponto, o Brasil segue a rota dos EUA.
Mestiçagem é questão de opção. Lá atrás, o
Brasil escolheu abraçá-la, enquanto EUA (e Alemanha e África do Sul) instituíam
a separação de raças. Atualmente, o Brasil desenvolveu o hábito de copiar o que
há de pior nos EUA. Pela direita, imita Trump.
Pela esquerda, imita o birracialismo –e ainda, ridiculamente, alega que isso é
"decolonial". O livro de Risério tem uma contraindicação: não serve
para militantes.
5 comentários:
Perfeito
Excelente
Se pardo também é negro,a mestiçagem é apenas retórica.
E do mesmo jeito que pardo e' negro, ele tb e' branco.
Os termos miscigenação e mestiçagem têm sido usados essencialmente como sinônimos, seja em disciplinas biológicas (para vários tipos de espécies animais) como também em áreas apenas humanas, que se aprofundam sobre nossa espécie. Risério opta por tentar diferenciar estes termos, ele "reserva" (como repete o colunista) o segundo termo para um conceito mais restrito e supostamente apenas humano, o que é pouco convincente e, na minha opinião, pouco lógico. Mas isto atende os interesses do colunista, que considera tal distinção uma demonstração de "rigor", quando é apenas uma tentativa de diferenciar Chico e Francisco. O novo conceito de mestiçagem adotado por Risério contraria as práticas usuais de uso deste conceito em muitas ciências biológicas, sem qualquer vantagem evidente nesta tentativa.
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