segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Demétrio Magnoli - O amigo russo

O Globo

A súbita oposição de Lula ao TPI deve-se, exclusivamente, ao caso Putin

‘O TPI é de algumas nações e não de todas, e é esse o alerta que o presidente fez, no sentido da necessidade de haver igualdade entre os países. Ou seja: ou todos aderem ou não faz sentido um tribunal que seja para julgar apenas uns e não outros.’ O ministro da Justiça, Flávio Dino, concluiu seu raciocínio sugerindo que, “em algum momento, a diplomacia brasileira pode rever a adesão a esse acordo”.

Dino ignorou o constrangimento provocado no Itamaraty pela ofensiva de Lula contra o Tribunal Penal Internacional (TPI). Na Índia, por ocasião do G20, o presidente convidou Putin a comparecer à cúpula do fórum marcada para 2024, no Rio, assegurando que seu governo o protegeria da ordem de prisão emitida pelo tribunal internacional. Depois, alertado sobre a letra da lei brasileira, que acolhe as decisões da corte multilateral, sugeriu uma eventual retirada do Estatuto de Roma, o tratado de fundação do TPI.

— Nunca tinha ouvido falar desse tribunal — alegou Lula ao recuar do convite ao autocrata russo, mentindo sem corar

O Brasil está entre os primeiros signatários do Estatuto de Roma, de 1998, e Lula indicou uma juíza brasileira para o tribunal. A súbita oposição ao TPI deve-se, exclusivamente, ao caso Putin. É, também, em nome do amigo russo que Dino se engaja na campanha lulista de descrédito e chantagem.

Tanto o presidente quanto seu ministro simulam ignorância com o intuito de desinformar a opinião pública. Lula sabe que, ao contrário do que disse, há signatários do TPI entre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (França e Reino Unido). Dino sabe que o tribunal pode, sim, julgar acusados de países não signatários — como, aliás, evidencia a ordem de prisão contra Putin. A falsa acusação de “desequilíbrio” do tribunal formulada pela dupla busca, apenas, assentar a campanha numa antiga tradição discursiva antiocidental.

O TPI é um fruto tardio da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A Declaração foi adotada pela ONU com o voto de 48 países e as abstenções de oito, entre eles a antiga URSS e a Arábia Saudita. A URSS alegou que o documento poderia ensejar a interferência externa na sua soberania. A monarquia saudita contestou a noção de universalidade dos direitos humanos, afirmando a supremacia da lei islâmica (sharia). Mais tarde, arautos de um terceiro-mundismo radical retomaram a narrativa de que a Declaração era uma ferramenta diplomática do “imperialismo ocidental”.

A Declaração de 1948 não é um texto “ocidental”. Como ensina Celso Lafer, sua elaboração inspirou-se em diferentes tradições filosóficas e jurídicas. O TPI, similarmente, não é um “tribunal ocidental”, mas um órgão multilateral com 123 signatários, entre eles a quase totalidade dos países latino-americanos e a maioria dos países africanos. As reverberações terceiro-mundistas das sentenças de Lula e Dino funcionam como álibis para uma operação de alinhamento da política externa brasileira com a China e a Rússia.

A invasão da Ucrânia precipitou o desabamento da ordem internacional pós-Guerra Fria, que já experimentava os choques causados pelo antagonismo entre Estados Unidos e China. Nesse cenário, Xi Jinping proclamou “aliança eterna” com a Rússia e conduziu a ampliação do Brics, buscando transformá-lo em polo de contraposição ao G7. Sua ausência na cúpula do G20, em Nova Délhi, representou mais que um sinal da rivalidade sino-indiana. O objetivo era debilitar o principal fórum de cooperação Norte-Sul. Eis o contexto que explica o bombardeio lulista ao TPI.

A “diplomacia brasileira” não pode simplesmente “rever a adesão” ao TPI, como sugeriu um Dino que não teme o ridículo, pois o tratado foi gravado na nossa Constituição. A finalidade da ofensiva lulista contra o tribunal é mais limitada: trata-se de chantageá-lo para a retirada da acusação a Putin, ignorando o crime da deportação de crianças ucranianas para a Rússia.

Contudo nada é impossível. Uma “santa aliança” do governo Lula com o bolsonarismo, que também admira o amigo russo, criaria condições para uma emenda constitucional. Assim, o Brasil sacrificaria o TPI no altar de Putin.

 

3 comentários:

Mais um amador disse...

Perfeito

ADEMAR AMANCIO disse...

Cruzes!

Daniel disse...

Magnoli, entre imbecilidades como aqui e acertos eventuais. O sujeito é capaz de escrever sobre qualquer coisa pra faturar uns trocados