O Globo
A súbita oposição de Lula ao TPI deve-se,
exclusivamente, ao caso Putin
‘O TPI é de algumas nações e não de todas,
e é esse o alerta que o presidente fez, no sentido da necessidade de haver
igualdade entre os países. Ou seja: ou todos aderem ou não faz sentido um
tribunal que seja para julgar apenas uns e não outros.’ O ministro da
Justiça, Flávio Dino,
concluiu seu raciocínio sugerindo que, “em algum momento, a diplomacia
brasileira pode rever a adesão a esse acordo”.
Dino ignorou o constrangimento provocado no Itamaraty pela ofensiva de Lula contra o Tribunal Penal Internacional (TPI). Na Índia, por ocasião do G20, o presidente convidou Putin a comparecer à cúpula do fórum marcada para 2024, no Rio, assegurando que seu governo o protegeria da ordem de prisão emitida pelo tribunal internacional. Depois, alertado sobre a letra da lei brasileira, que acolhe as decisões da corte multilateral, sugeriu uma eventual retirada do Estatuto de Roma, o tratado de fundação do TPI.
— Nunca tinha ouvido falar desse tribunal —
alegou Lula ao recuar do convite ao autocrata russo, mentindo sem corar
O Brasil está entre os primeiros
signatários do Estatuto de Roma, de 1998, e Lula indicou uma juíza brasileira
para o tribunal. A súbita oposição ao TPI deve-se, exclusivamente, ao caso
Putin. É, também, em nome do amigo russo que Dino se engaja na campanha lulista
de descrédito e chantagem.
Tanto o presidente quanto seu ministro
simulam ignorância com o intuito de desinformar a opinião pública. Lula sabe
que, ao contrário do que disse, há signatários do TPI entre os membros
permanentes do Conselho de Segurança da ONU (França e Reino Unido). Dino sabe
que o tribunal pode, sim, julgar acusados de países não signatários — como,
aliás, evidencia a ordem de prisão contra Putin. A falsa acusação de
“desequilíbrio” do tribunal formulada pela dupla busca, apenas, assentar a
campanha numa antiga tradição discursiva antiocidental.
O TPI é um fruto tardio da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948. A Declaração foi adotada pela ONU com o
voto de 48 países e as abstenções de oito, entre eles a antiga URSS e a Arábia
Saudita. A URSS alegou que o documento poderia ensejar a interferência externa
na sua soberania. A monarquia saudita contestou a noção de universalidade dos
direitos humanos, afirmando a supremacia da lei islâmica (sharia). Mais tarde,
arautos de um terceiro-mundismo radical retomaram a narrativa de que a
Declaração era uma ferramenta diplomática do “imperialismo ocidental”.
A Declaração de 1948 não é um texto
“ocidental”. Como ensina Celso Lafer, sua elaboração inspirou-se em diferentes
tradições filosóficas e jurídicas. O TPI, similarmente, não é um “tribunal
ocidental”, mas um órgão multilateral com 123 signatários, entre eles a quase
totalidade dos países latino-americanos e a maioria dos países africanos. As
reverberações terceiro-mundistas das sentenças de Lula e Dino funcionam como
álibis para uma operação de alinhamento da política externa brasileira com a China
e a Rússia.
A invasão da Ucrânia precipitou o
desabamento da ordem internacional pós-Guerra Fria, que já experimentava os
choques causados pelo antagonismo entre Estados Unidos e China. Nesse cenário,
Xi Jinping proclamou “aliança eterna” com a Rússia e conduziu a ampliação do
Brics, buscando transformá-lo em polo de contraposição ao G7. Sua ausência na
cúpula do G20, em Nova Délhi, representou mais que um sinal da rivalidade
sino-indiana. O objetivo era debilitar o principal fórum de cooperação Norte-Sul.
Eis o contexto que explica o bombardeio lulista ao TPI.
A “diplomacia brasileira” não pode
simplesmente “rever a adesão” ao TPI, como sugeriu um Dino que não teme o
ridículo, pois o tratado foi gravado na nossa Constituição. A finalidade da
ofensiva lulista contra o tribunal é mais limitada: trata-se de chantageá-lo
para a retirada da acusação a Putin, ignorando o crime da deportação de
crianças ucranianas para a Rússia.
Contudo nada é impossível. Uma “santa
aliança” do governo Lula com o bolsonarismo, que também admira o amigo russo,
criaria condições para uma emenda constitucional. Assim, o Brasil sacrificaria
o TPI no altar de Putin.
3 comentários:
Perfeito
Cruzes!
Magnoli, entre imbecilidades como aqui e acertos eventuais. O sujeito é capaz de escrever sobre qualquer coisa pra faturar uns trocados
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