terça-feira, 25 de junho de 2024

Andrea Jubé - O Lula de 2002 ajuda a decifrar o de 2024

Valor Econômico

Passado bate à porta provocando reflexão sobre o presente e o futuro

Na era da velocidade, do instantâneo Instagram, do conciso X (o ex-Twitter), quando tudo soa efêmero, o passado bate à porta provocando uma reflexão sobre o presente e o futuro. Por isso, a estreia há poucos dias do documentário “Entreatos”, de João Moreira Salles, na grade da Netflix nos desafia a apertar a tecla “stop” e olhar para trás, para o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva na iminência de vencer a eleição para a Presidência da República em 2002. Para compreender o Lula de 2024 é importante não esquecer o Lula de 22 anos atrás.

O filme chega ao streaming ao completar 20 anos, porque embora rodado nos últimos 40 dias da campanha presidencial, só foi lançado em 2004. As cenas de bastidores registradas por Salles e pelo diretor de fotografia Walter Carvalho provocam nostalgia ao mostrar o petista com ar jovial, a cabeleira ainda preta e farta e uma cigarrilha quase sempre entre os dedos. Vício abandonado após o câncer na laringe, que minou a potência de sua voz - uma de suas armas mais poderosas na política.

Em uma cena que dialoga com os dias atuais, Lula admite que, de vez em quando, fala demais. Durante um voo rumo a um comício em Porto Alegre (RS), o petista comenta que diante da perspectiva real de vencer o pleito, deveria ser mais responsável com as palavras. “É que você tem que medir cada palavra (...) você fica se policiando”, lamentou. “Eu deveria me mancar e parar de falar, mas eu não paro de falar”, reconheceu.

No mesmo trecho, Luiz Dulci (que seria ministro da Secretaria-Geral) observa que Lula é um “improvisador nato”. Justamente, uma das características que mais afligem alguns aliados até hoje pelo potencial de danos. Recentemente, uma ala do governo avaliou que Lula excedeu-se nas críticas ao presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, ao ponto de agravar uma crise que ensejou a alta recorde do dólar e mais instabilidade na economia.

A leitura é que a crítica à autoridade monetária era pertinente - até pelo flerte com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) - mas Lula exagerou no tom. Nesse contexto, vem à memória a relação de sintonia fina entre o petista e Henrique Meirelles, que presidiu o Banco Central nos oito anos de seus dois primeiros mandatos.

Em 2003, no início do governo, o Banco Central, sob Meirelles, elevou a taxa Selic de 25% para 25,5% ao ano, em meio ao severo ajuste fiscal com o qual Lula havia se comprometido. Não houve sequer ruído entre Lula e Meirelles. Ainda hoje, Lula diz aos interlocutores que Meirelles foi um de seus aliados mais leais. Inclusive, Lula assinará o prefácio do livro de memórias do ex-aliado que está no prelo.

Na última semana, Meirelles declarou que Lula lhe deu “autonomia de fato” para comandar o BC. Mas defendeu a autonomia legal da instituição, argumentando ser impossível assegurar que o pacto firmado entre ele e o petista seja cumprido por todos.

Em outra passagem do documentário, o então presidente do PT, José Dirceu (que seria o poderoso chefe da Casa Civil) refuta reportagem que o apresentara como o homem que fazia a cabeça de Lula. “Quem fez a minha cabeça foi o Lula”, retrucou. No filme, desfilam quadros do PT que, naquele tempo, eram conselheiros a quem, efetivamente, Lula dava ouvidos: Antonio Palocci, Luiz Dulci, Gilberto Carvalho, Luiz Gushiken (morto em 2013), Aloizio Mercadante, além de Dirceu.

Mais de duas décadas depois, Dirceu foi preso, condenado no mensalão e na Lava-Jato, mas está em fase de reabilitação política, embora afastado de Lula. Palocci também foi preso e condenado na Lava-Jato, mas vive no ostracismo, após a delação explosiva em que comprometeu Lula - anos depois, invalidada pelo Supremo Tribunal Federal.

Gilberto Carvalho segue no governo, embora longe do Palácio do Planalto. Luiz Dulci deixou a política, e apenas Mercadante segue próximo de Lula, hoje na presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

No entorno de Lula, a avaliação é que, atualmente, ninguém “faz a cabeça” do presidente porque ele retornou ao poder com postura “imperial”. Como se em 2003, os companheiros da fundação do PT tivessem subido a rampa ao seu lado, mas em 2023, ele tivesse percorrido o trajeto sozinho, consumido pelo sentimento de que após os processos e de um ano e sete meses na prisão, a terceira vitória viesse apenas de sua resiliência e capital político.

Em outro trecho, Lula é questionado se não sente falta de estar sozinho. Ele, então, classifica como “vício” seu apreço por estar sempre cercado de “agitação”, de “muita gente”. Declaração que, duas décadas depois, sugere a dimensão da angústia e sofrimento por que passou nos 580 dias de privação de liberdade em Curitiba.

De volta ao presente, vem à tona a visita que Lula fez nessa segunda-feira ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Por isso, vale citar a cena em que Lula faz troça do ex-adversário. Diante da perspectiva de vitória, ele diz que montará um gol para “peladas” no gramado do Palácio da Alvorada, e ironiza o tucano. “Ele não joga bola, não dança, não bebe um gole... Eu vou levar os meus cabritinhos para colocar lá”, gracejou. “Para correr atrás das emas”, emendou um interlocutor.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

"uma cigarrilha quase sempre entre os dedos. Vício abandonado após o CÂNCER na laringe" - e vários colunistas dizem que Lula nada aprendeu...
Quem aprende pouco são nossos jovens, que continuam viciados em tabaco OU substituem o cigarro comum pelos ainda mais viciantes e maléficos CIGARROS ELETRÔNICOS.

Anônimo disse...

Brilhante análise da colunista.