terça-feira, 25 de junho de 2024

Pedro Cafardo - Um olhar não ortodoxo para juros astronômicos

Valor Econômico

A despeito de ajudar a controlar a inflação, taxas elevadas deixam sequelas devastadoras para a sociedade, como baixo crescimento, aumento da dívida pública e ampliação da desigualdade de renda e riqueza 

Muitos jovens que trabalham na Faria Lima, em São Paulo, nem haviam nascido quando o Brasil viveu seus terríveis anos de hiperinflação, nas décadas de 1980 e 1990. Mas é possível que eles carreguem nas costas, além dos característicos coletes almofadados, algum resquício do trauma daquele período, transmitido pelas gerações então castigadas.

Semanas atrás, o mercado se assustou quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse ser a meta de inflação brasileira “exigentíssima” e “inimaginável”. O alvoroço se deu porque, para o mercado, ajustar para cima a meta de 3% ao ano seria um estímulo à volta da inflação e, talvez, aos anos terríveis.

Debelada a hiperinflação, em 1995, o país viveu quase sempre sob as taxas de juros reais mais altas do mundo. Um cálculo do professor Carlos Alberto de Augustini (FGV), publicado pela “Folha de S.Paulo”, mostra que as aplicações em renda fixa (CDI) deram retorno de 7.927% nos 30 anos do real, período em que a inflação (IPCA) acumulou alta de 704%. Ou seja, os ganhos foram mais de 11 vezes superiores à inflação.

Outro exemplo, agora deste século, indica que, desde 2005, os juros reais de cinco anos no Brasil foram, em média, de 6,5% ao ano. Esse nível permite a um rentista dobrar seu capital em 11 anos. Nos EUA, com juros reais de 0,4% ao ano no mesmo período, seriam necessários 173 anos para o investidor dobrar seu capital.

Os juros reais brasileiros foram e são astronômicos e, indiscutivelmente, não há economia que possa ter crescimento continuado com taxas nesse nível.

Afinal, por que isso acontece? Claro que o trauma dos anos 1980 e 1990 não é a razão principal. Na quarta-feira passada, o Banco Central, manteve a Selic em 10,5% ao ano, aplaudido pelo mercado e sob o argumento de que as conjunturas doméstica e internacional seguem incertas e exigem moderação. Mas por que aqui os juros reais precisam ser de mais de 6% ao ano, nível muito superior ao do resto do mundo?

A explicação ortodoxa, dominante, é superconhecida: o Brasil tem um problema fiscal, gasta mais do que arrecada. Quem quiser, porém, uma resposta não ortodoxa pode ler o Capítulo 10 - escrito pelo mestre em economia Bruno Mader, cientista social da USP - do megalivro “Financeirização, Crise, Estagnação e Desigualdade”.

Em trabalho acadêmico, Mader observa que os juros altíssimos são ao mesmo tempo causa e consequência da formação de um bloco político no Brasil: a coalizão financeiro-rentista. Ele se vale do economista polonês Michal Kalecki (1899-1970), que viu na curva de Philips a expressão de um conflito entre três blocos políticos na economia: bancário-rentista, industrial e trabalhista.

Teoricamente, esses blocos teriam preferências divergentes em relação às políticas monetária e fiscal. O bancário-rentista se beneficia dos juros altos. O industrial e o trabalhista têm vantagem com juros baixos. Kalecki observou que a taxa de juros varia como um pêndulo, servindo a um bloco ou outro dependendo do contexto inflacionário. Em algum momento, o bloco industrial se preocupa com a economia aquecida, que se aproxima do pleno emprego. Nessa hora, abandona o apoio à política monetária favorável aos trabalhadores e alinha-se ao bloco bancário-rentista. Alinhados, ambos defendem o aumento dos juros, afirmando que a inflação estaria fora do controle.

Bruno Mader faz então uma interessante observação: por causa do processo de financeirização, especialmente no Brasil, as empresas não financeiras (indústrias, por exemplo) passaram a ter parte relevante das receitas advindas de investimentos financeiros (não operacionais). Por isso, o pêndulo de Kalecki passou a se inclinar muito mais para uma coalizão rentista-industrial, já que os juros altos beneficiam os dois blocos. Ao mesmo tempo, deu-se uma espécie de “captura regulatória”, pela qual instituições são dominadas pelos interesses daqueles que elas deveriam regular.

Quaisquer que sejam as explicações para os juros astronômicos, fato é que, a despeito de ajudar a controlar a inflação, eles deixam sequelas devastadoras para a sociedade: baixo crescimento, aumento da dívida pública e ampliação da desigualdade de renda e riqueza.

Bronca da Conceição

Ao falar em concentração de renda e riqueza, ampliada no mundo com o neoliberalismo a partir dos anos 1980, vem a lembrança da grande economista luso-brasileira Maria da Conceição Tavares, que morreu em 8 de junho e foi estridente defensora da justiça social. Em agosto de 1995, no programa “Roda Viva” há dias reprisado pela TV Cultura, ela encerrou o programa dando um puxão de orelhas ao mesmo tempo maternal e agressivo nos economistas de então, uma mensagem mais do que atual:

“A economia não se preocupa com a justiça social e condena os povos a algo que está ocorrendo no mundo inteiro, uma brutal concentração de renda, com desemprego e miséria. Isso está acontecendo até no Norte. Não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos, na França e na Alemanha. Isso pra mim não é economia, é coisa do demo. É coisa de tecnocrata alucinado que acha que está tudo bem.

“Não está tudo bem. Eu sou da esquerda tradicional, a do Norberto Bobbio mesmo. Eu me preocupo desde que nasci, porque meus país também se preocupavam, com a justiça social. Uma economia que precisa primeiro estabilizar, depois crescer e só então distribuir é uma falácia. E tem sido uma falácia: não estabiliza, cresce aos solavancos e não distribui.

“Essa é a história da economia brasileira desde o pós-guerra. Ver os meus queridos amigos, que junto comigo diziam que tínhamos que fazer ao mesmo tempo estabilização, crescimento e distribuição, que lutaram comigo no movimento de economistas, dizer hoje o contrário do que disseram é uma das maiores dores da minha vida. Isso é dor, mas também é raiva por tanta energia para lutar por aquilo que o velho Bobbio e todos os jovens lutaram. Se não se preocupa com a justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. Você é um tecnocrata”.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Juros ASTRONÔMICOS! Enfim um colunista se distanciando um pouco dos seus tantos colegas "amigos do mercado" ou mercadófilos, defensores de taxas de juros que nos colocam na liderança das maiores taxas de juros reais do mundo! Que nos vendem este ABSURDO como algo bom e até necessário pra nossa economia e nossa sociedade...