quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Paulo Delgado - Mais luz!

O Estado de S. Paulo

A democracia tem sido um regime que reserva aos de cima escolhas individuais e aos de baixo arremedos coletivos. Sem crítica ou pressão, ela não tem futuro

Destaque na vida atual é a força do conveniente sobre o que é moral. O infortúnio da competição pelo individualismo ressuscita coisas e situações que pareciam mortas. O País atravessou a liberdade e não sabe mais o que fazer com ela. Fora das altas esferas, poucos estão tranquilos com a democracia brasileira. Dali foi imposto que a pessoa deveria ser mais útil do que melhor e que a inteligência não poderia ser mais ensolarada. Não há mais utilidade em preparar-se mais do que um outro. O País se entregou ao igualitarismo judicial apologético e mistificador sem investigar a morbidade de seus objetivos.

A longevidade dos padrões patológicos de nosso modelo político, jurídico e econômico torna estável a circulação das pessoas, fazendo com que uma minoria seja dona da maioria dos bens do País, e transfere a energia indesejada para a massa do resto dos assalariados, micros, informais ou assistidos. Para proteger seu patrimônio na terra, melhor ter mais fé no acaso do que nas leis. Difícil acreditar que não vá parar na morada dos justos quem prospera mais sendo injusto. Ora bolas, cansaço das profissões, ilusão com estranhas vocações. Personalidades duplas, o acusado e o juiz numa mesma pessoa, fogo de artifício estimulado por um modelo administrativo que sufoca o apelidado Estado de Direito. Acrescentar “democrático” foi um pleonasmo do Constituinte, inseguro com a inconsistência dos conceitos de Estado e de Direito, quando anteviu a solidez da pedra dura que manda e desmanda no Estado.

É impossível ter boa vontade com o modelo político, eleitoral, econômico, social, educacional, policial e judiciário praticado no País e não considerar imbatíveis as razões de Raymundo Faoro: tudo o que faz o Estado acaba sendo sempre de muita utilidade para manter no comando os donos do poder de fato. Dizer a verdade só é aconselhável a quem se eleva acima do âmbito dos vivos. Fato muito atual é que o medo da responsabilidade de uns e nenhum medo da irresponsabilidade de outros é que fizeram da judicialização de tudo a máquina grandiosa que alimenta o fracasso do processo decisório administrativo e fez procurador, juiz e advogado o novo rico nacional.

A democracia tem sido um regime que reserva aos de cima escolhas individuais e aos de baixo arremedos coletivos. Sem crítica ou pressão, ela não tem futuro. Nenhum estudo acadêmico suporta mais ter de atribuir a si mesmo os reveses por tentar explicar o Brasil. Só há ouvidos para ardor que produza chamas e o que deixa, ou leva, a desejar. Escrever em prosa, ou ficção, provocar o ideal – chega de estudos, gráficos, estatísticas! – é uma forma de buscar luz e evitar o destempero. O elogio entre nós visa a dar verniz ao amor interessado num país carente da nobreza do amor desinteressado. Talvez esta seja uma crônica errada sobre a certeza da incerteza. O problema principal continua a ser a igualdade estática da maneira material de ver, classificar e enquadrar a desigualdade entre o falso e o verdadeiro. A potência primordial que nos falta não é dinheiro.

Luciano de Samósata alertou sobre a inutilidade filosófica da variedade de expedientes que produz riqueza e pobreza. Do lado de cima, todos os esnobes, poderosos, tiranos ou influentes chegarão nus ao infinito. Não importa se passaram por Oxford, Colúmbia, Lisboa ou Camanducaia. É implacável como são feitas as fortunas. Criadores de softwares, políticos ou magistrados, todos terão de se desfazer de tudo para entrarem despidos no barco de Caronte, com a mesma aparência daqueles que usaram para seus propósitos. Ainda que tenham ofertado benesses filantrópicas para fugir da tributação, será impossível a diferenciação de rosto, roupa, carro, bolsa, saldo, cepas ou charutos, quando todos embarcarem na direção da praça pública indiferenciada e niveladora que é o mundo que nos espera a todos.

Do lado de baixo, a originalidade do brasileiro se perdeu diante do despotismo não esclarecido que domina os costumes na política, nos tribunais, escolas, igrejas, televisão, bares, no trânsito e similares. Quando não era obrigatório cada um se mostrar como acha que é para o outro, cada um era de fato o que é. A verve jocosa da indiferença se ramificou e tomou vários sentidos. O espírito não corresponde mais a um papel e ocupa qualquer função. Sem elegância para nada, reto, sem nuança qualquer, foi por um pequeno passo que nosso povo começou a se interessar mais pela comédia do que pela tragédia. A crítica não causa mais nenhum prazer em sociedade obcecada com o Pilates do oportunismo e a harmonização facial da influência danosa.

É muito antigo o princípio do precedente perigoso de Francis Cornford: sem ritual, não faça nada pela primeira vez. Se você é jovem, não leia o artigo. Se é velho, jogue fora, você não vai aprender nada com isso. Se for ambicioso, esqueça, acenda fogo com ele. Mas, se não tiver menos de 25 anos e continuar generoso depois de 30, e se você for inquieto e seu espírito anseia por alguma nova forma de bem viver, então ajude o País por misericórdia.

 

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