O Estado de S. Paulo
A democracia tem sido um regime que reserva aos de cima escolhas individuais e aos de baixo arremedos coletivos. Sem crítica ou pressão, ela não tem futuro
Destaque na vida atual é a força do conveniente sobre o que é moral. O infortúnio da competição pelo individualismo ressuscita coisas e situações que pareciam mortas. O País atravessou a liberdade e não sabe mais o que fazer com ela. Fora das altas esferas, poucos estão tranquilos com a democracia brasileira. Dali foi imposto que a pessoa deveria ser mais útil do que melhor e que a inteligência não poderia ser mais ensolarada. Não há mais utilidade em preparar-se mais do que um outro. O País se entregou ao igualitarismo judicial apologético e mistificador sem investigar a morbidade de seus objetivos.
A longevidade dos padrões patológicos de
nosso modelo político, jurídico e econômico torna estável a circulação das
pessoas, fazendo com que uma minoria seja dona da maioria dos bens do País, e
transfere a energia indesejada para a massa do resto dos assalariados, micros,
informais ou assistidos. Para proteger seu patrimônio na terra, melhor ter mais
fé no acaso do que nas leis. Difícil acreditar que não vá parar na morada dos
justos quem prospera mais sendo injusto. Ora bolas, cansaço das profissões, ilusão
com estranhas vocações. Personalidades duplas, o acusado e o juiz numa mesma
pessoa, fogo de artifício estimulado por um modelo administrativo que sufoca o
apelidado Estado de Direito. Acrescentar “democrático” foi um pleonasmo do
Constituinte, inseguro com a inconsistência dos conceitos de Estado e de
Direito, quando anteviu a solidez da pedra dura que manda e desmanda no Estado.
É impossível ter boa vontade com o modelo
político, eleitoral, econômico, social, educacional, policial e judiciário
praticado no País e não considerar imbatíveis as razões de Raymundo Faoro: tudo
o que faz o Estado acaba sendo sempre de muita utilidade para manter no comando
os donos do poder de fato. Dizer a verdade só é aconselhável a quem se eleva
acima do âmbito dos vivos. Fato muito atual é que o medo da responsabilidade de
uns e nenhum medo da irresponsabilidade de outros é que fizeram da judicialização
de tudo a máquina grandiosa que alimenta o fracasso do processo decisório
administrativo e fez procurador, juiz e advogado o novo rico nacional.
A democracia tem sido um regime que reserva
aos de cima escolhas individuais e aos de baixo arremedos coletivos. Sem
crítica ou pressão, ela não tem futuro. Nenhum estudo acadêmico suporta mais
ter de atribuir a si mesmo os reveses por tentar explicar o Brasil. Só há
ouvidos para ardor que produza chamas e o que deixa, ou leva, a desejar.
Escrever em prosa, ou ficção, provocar o ideal – chega de estudos, gráficos,
estatísticas! – é uma forma de buscar luz e evitar o destempero. O elogio entre
nós visa a dar verniz ao amor interessado num país carente da nobreza do amor
desinteressado. Talvez esta seja uma crônica errada sobre a certeza da
incerteza. O problema principal continua a ser a igualdade estática da maneira
material de ver, classificar e enquadrar a desigualdade entre o falso e o
verdadeiro. A potência primordial que nos falta não é dinheiro.
Luciano de Samósata alertou sobre a
inutilidade filosófica da variedade de expedientes que produz riqueza e
pobreza. Do lado de cima, todos os esnobes, poderosos, tiranos ou influentes
chegarão nus ao infinito. Não importa se passaram por Oxford, Colúmbia, Lisboa
ou Camanducaia. É implacável como são feitas as fortunas. Criadores de
softwares, políticos ou magistrados, todos terão de se desfazer de tudo para
entrarem despidos no barco de Caronte, com a mesma aparência daqueles que
usaram para seus propósitos. Ainda que tenham ofertado benesses filantrópicas
para fugir da tributação, será impossível a diferenciação de rosto, roupa,
carro, bolsa, saldo, cepas ou charutos, quando todos embarcarem na direção da
praça pública indiferenciada e niveladora que é o mundo que nos espera a todos.
Do lado de baixo, a originalidade do
brasileiro se perdeu diante do despotismo não esclarecido que domina os
costumes na política, nos tribunais, escolas, igrejas, televisão, bares, no
trânsito e similares. Quando não era obrigatório cada um se mostrar como acha
que é para o outro, cada um era de fato o que é. A verve jocosa da indiferença
se ramificou e tomou vários sentidos. O espírito não corresponde mais a um
papel e ocupa qualquer função. Sem elegância para nada, reto, sem nuança
qualquer, foi por um pequeno passo que nosso povo começou a se interessar mais
pela comédia do que pela tragédia. A crítica não causa mais nenhum prazer em
sociedade obcecada com o Pilates do oportunismo e a harmonização facial da
influência danosa.
É muito antigo o princípio do precedente
perigoso de Francis Cornford: sem ritual, não faça nada pela primeira vez. Se
você é jovem, não leia o artigo. Se é velho, jogue fora, você não vai aprender
nada com isso. Se for ambicioso, esqueça, acenda fogo com ele. Mas, se não
tiver menos de 25 anos e continuar generoso depois de 30, e se você for
inquieto e seu espírito anseia por alguma nova forma de bem viver, então ajude
o País por misericórdia.
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