O Globo
Governo não tem instrumentos ou capacidade
para lidar com os problemas fora de uma esclerosada politicagem personalista
O Brasil está em chamas, sofrendo uma amarga
mudança em sua relação com a natureza. Uma transformação jamais pensada porque
o país era imaginado como “coração do mundo, pátria do Evangelho”, estava
protegido dos desastres naturais.
Abrigados por Deus e pela Virgem, estávamos
livres para fazer tudo com nossas matas, montanhas e rios. Até que surgiu a tal
“mudança
climática” — obra de comunistas e malvados capitalistas. Sua última
encarnação é o bandoleiro golpista Elon Musk,
que abriu o perturbador baú da informação com liberdade — mercadorias funestas
porque obrigam a discutir limites, sobretudo para o enraizado elitismo que os
rejeita.
Estávamos a salvo e “deitados eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo”. Dormitávamos numa terra açucarada, movida a escravidão africana e baronatos amulatados. Não precisávamos de segregação porque todos os inferiores conheciam seus lugares. Desse modo, a massa de imigrantes-escravos finalizou a modelagem de uma cruel hierarquia social que nosso elitismo de direita e esquerda jamais percebeu.
Hoje, entretanto, nos damos conta de que o
governo não tem instrumentos ou capacidade para lidar com os problemas fora de
uma esclerosada politicagem personalista, que reduz questões sociais a pessoas.
Nessa velha politicagem, basta um discurso
veemente, um churrasco ou um encontro discreto, regado a troca de privilégios
em alguma “Bras”, para selar “soluções” que significam adiamentos, porque
“mexer nisso dá muito problema”.
O sistema político, a despeito de suas
iniquidades, contradições e ineficácia, ganha em estabilidade, tornando-se um
fosso de contradições. Ambiguidades que, no plano legal e ético, despertam e
lamentavelmente justificam todas as desconfianças, engendrando os aventureiros
que podem terminar no seu cume.
O que fazer — perguntam os “povos originais”
ao lado de quem tem um mínimo de senso — com um sistema cujo projeto consiste
precisamente em confundir progresso civilizatório com derrubada, poluição,
contrabando, contravenção e desmatamento?
Tudo se passa como se fôssemos vítimas de
nossos costumes. Como se fôssemos dominados por um viés antitransformação que
nos obriga a viver a História sem viver as transformações que o devir histórico
obriga a realizar. Negamos ou pouco valorizamos nossas conquistas e avanços se
eles forem obras de adversários — o que mostra como, na política, o outro conta
mais que o Brasil.
Quando um partido político que se pensa como
inovador classifica como “herança maldita” um plano que restituiu a
universalidade da moeda, como o Plano Real,
temos a prova de quanto somos conservadores, senão reacionários. Aliás, seria
a Rússia reacionária
por ainda ser comunista? E você, meu amigo, não acha que o comunismo de Lênin
ficou tão idoso quanto o capitalismo de Rockefeller e Henry Ford, hoje
confrontado com o capitalismo digitalizado de Musk e Trump?
Como disse noutra crônica, é preciso não
misturar o conceito de polaridade, que faz parte da cognição humana, com
polarização, que leva ao assassinato do novo antes mesmo de conhecê-lo. E
produz um reacionarismo incapaz de distinguir progresso, desde que esse
progresso venha do outro: do bandido suspeito.
O tal solucionar não solucionando que
tipifica o sistema em que somos “educados” para concordar com tudo e esperar —
porque um dia “tudo será resolvido”— tem marcado nosso viés político. A tal
ponto que hoje, além dos confrontos rotineiros entre posicionamentos
ideológicos, temos de agir concreta e resolutamente para fazer face às
devastações climáticas. Um tipo de problema que nossa cosmologia
católico-jesuítica jamais poderia prever. Pois, nela, o mundo não seria feito
por nossa ações, mas por artes divinas, e seria imutável. Foi essa relação
entre nosso “Brasil brasileiro” e a natureza — esta terra que tudo produz — que
mudou e hoje se agrava numa dinâmica que nosso sistema governamental, voltado
para si próprio, é incapaz de enfrentar. O Brasil está, pois, em meio a fogos
ideológicos e incêndios históricos. Haja Apocalipse...
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