• Enquanto o crime organizado viceja na letargia da gestão pública, o "crime institucionalizado" é fruto da própria ação estruturada e pensada de um grupo de homens no poder
- O Globo
Com os últimos fatos trazidos à luz pela Operação Juízo Final, sétima fase da célebre Lava Jato, a sociedade brasileira vem assistindo, ainda sem entender suas dimensões, ao surgimento de mais um flagelo — quase — endêmico do nosso país; digo "quase", pois alguns países africanos também a experimentam.
Trata-se do que podemos denominar de "crime institucionalizado". Tal fenômeno, que adquiriu contornos marcantes, que o diferenciam conceitualmente do crime organizado convencional, merece urgente atenção não apenas das autoridades policiais, do Ministério Público e do Judiciário, mas, sobretudo, da imprensa e da sociedade como um todo, pois sua sedimentação tem a capacidade de minar as possibilidades de desenvolvimento nacional.
Ao contrário do crime organizado, já rebaixado à delinquência juvenil, o "crime institucionalizado" não lança mão de atividades ilegais, como o tráfico de drogas, de armas, o jogo ilegal etc. Esse novo flagelo utiliza-se apenas da plataforma oficial, dos governos das três esferas, do estamento público, dos ministérios da República, da política partidária e das regras eleitorais para prospectar e desviar fortunas do erário. Todo o seu faturamento tem origem nos contratos de serviços e obras, nas concorrências públicas, nos repasses para programas de governo.
Trata-se de atividade mais lucrativa e segura do que qualquer negócio ilegal convencional, colocado em prática por organizações tipo máfia.
Enquanto o crime organizado viceja aproveitando-se da letargia e da omissão de alguns homens públicos, o "crime institucionalizado" é fruto da própria ação estruturada e pensada de um grupo de homens e mulheres que comandam determinado setor, empresa ou unidade do poder público.
Outra diferença marcante é que, enquanto o crime organizado coopta, ou, quando muito, infiltra um agente aqui e acolá, na polícia ou numa determinada repartição, o "crime institucionalizado" indica e nomeia, com a devida publicação em diários oficiais, autoridades que servem aos seus propósitos tanto na empreitada criminosa propriamente dita, como na tomada de medidas garantidoras da impunidade do grupo e da salvaguarda do butim, nos três poderes da República.
Outra nuance de relevo é que o "crime institucionalizado", com seus exércitos de nomeados em cargos e funções estratégicas, para garantir aspectos vitais da atividade, isto é, para institucionalizar a própria moenda criminosa, estaria, desgraçadamente, lançando mão da elaboração e promulgação de normas administrativas, e até de leis, que facilitem sua consecução.
Na última década o "crime institucionalizado" vitaminou-se tremendamente, aproveitando-se dos seguidos recordes de arrecadação tributária. Com o ingresso de dezenas de milhões de pessoas na classe média e o consequente aumento do consumo, os cofres públicos abarrotaram-se de dinheiro.
São exatamente essas divisas, oriundas do contribuinte brasileiro, que vêm alimentando o "crime institucionalizado".
Uma de suas consequências práticas mais nefastas é a existência de concorrências públicas viciadas pelas fraudes do "crime institucionalizado" — há quem diga, inclusive, ser difícil encontrar, nos dias de hoje, uma única licitação que não seja "arrumada".
Contudo, ainda mais desoladora é a possibilidade da existência de vultosos projetos sendo aprovados com o único e exclusivo intento de desviar verbas públicas. É de fato o pior dos mundos, onde a corrupção estaria no nascedouro das iniciativas.
Não seria mais o caso do estádio de futebol superfaturado, mas o caso do estádio de futebol que nem deveria ter sido construído, isto é, a corrupção de raiz. Não é, como dizem por aí, "o malfeito", mas o que nem deveria ter sido feito.
Esta situação tem saída, por mais difícil e desfavorável que possa parecer. E a solução passa necessariamente pela total e completa blindagem política de todos os órgãos que compõem a persecução criminal, sem prejuízos de outras medidas de proteção às instituições do Estado brasileiro, mormente as agências controladoras e tribunais de contas, nas três esferas políticas.
O quadro aponta para a necessidade da edificação de uma estrutura policial, altamente preparada, que faça frente a tal ameaça, e com capacidade de investigar aqueles que nomearam seus próprios chefes.
Jorge Pontes é delegado federal e foi diretor da Interpol do Brasil
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