- O Estado de S. Paulo
O homem público nem sempre escolhe o momento em que é obrigado a atuar. Levado a opinar ou a decidir, não deve afastar-se de seus ideais nem pode desconhecer o contexto em que atua. Estamos confrontados com um processo desafiador. Sempre fui cauteloso para endossar impeachments porque se trata de mecanismo legal que anula uma decisão eleitoral majoritária. Procedi assim no caso do governo Collor. Só apoiei a tese depois de múltiplos indícios da existência de malfeitos. O surgimento de um deles (caso do Fiat Elba), a paralisia do governo e o clamor das ruas foram decisivos para a aprovação do impeachment. Fui cauteloso porque temia o retrocesso institucional: a nova Constituição tinha sido promulgada em data recente e ainda havia arroubos autoritários no ar.
Procedi de igual maneira quando da possibilidade de impeachment do então presidente Lula por causa do mensalão. Na época alguns afirmaram que procedi na suposição de que, desmoralizado, ele seria inevitavelmente derrotado em sua tentativa de se reeleger. Má informação ou má-fé. Eu pensava na dimensão histórica: Lula tinha uma trajetória, era o primeiro líder sindical a chegar à Presidência. A acusação de “as elites” o terem derrubado seria nódoa a pesar sobre a política brasileira por muito tempo, podendo até mesmo fraturar a sociedade.
Por que adotar outra atitude agora? É que o tempo revelou com nitidez o que antes era nebuloso. Para repetir palavras proferidas no Supremo Tribunal Federal em 2010 a respeito do mensalão, “uma organização criminosa se apossou do Estado”.
As práticas corruptas, reiteradas no petrolão, não se atêm a condutas pessoais, em si inaceitáveis. Trata-se da formação de um sistema que ligou governo, empresas e funcionários para eventual enriquecimento pessoal, mas principalmente para financiar partidos e campanhas eleitorais visando à manutenção do poder. É uma fraude à democracia, além de assalto ao Tesouro.
Sempre me referi à presidente Dilma respeitosamente. Não se trata, porém, do julgamento de condutas individuais, mas institucionais. Ao endossar a trama pueril de que há um “golpe” e se dispor a abrigar em seu governo pessoa suspeita de reles corrupção pessoal, a presidente incorre na dúvida de obstrução da Justiça, qualquer que tenha sido sua intenção. Isso reforça o sentimento favorável à abertura do impeachment na Câmara. Há outros indícios referidos na petição inicial a justificá-la, além das “pedaladas fiscais”. Aberto o processo, as provas devem ser julgadas pelo Senado.
O capítulo da Constituição que elenca os crimes de responsabilidade é amplo. O processo se desenrola no âmbito político, e não no estritamente jurídico. O próprio julgamento se dá no Congresso, e não nos tribunais. Como fundamento moral para tudo isso se tem o deslize essencial: a corrupção da democracia sob os auspícios de governos petistas. Do ponto de vista político é disso que se trata, e não de imputações pessoais. Para que se apreciem os argumentos probatórios de culpa, assim como os que poderiam levar à absolvição, aí, sim, o julgamento não pode ser meramente político nem baseado na falta de popularidade. Daí a ampla defesa às imputações penais. E a decisão final caberá ao Senado, sob o comando do presidente do STF.
A simples mudança de governo não resolverá os problemas nacionais. Estes requerem uma visão nova, a mudança das práticas político-eleitorais, bem como das políticas econômicas que nos levaram à recessão, ao desemprego e à desilusão.
Práticas essas resultantes da má condução do Estado pelo lulopetismo. Sob a retórica maniqueísta de que representariam o bem, enquanto as demais encarnariam o mal, o que se viu foi a formação de quadrilhas para assegurar o poder, com a aquiescência de empresários e partidos. Nenhum avanço social necessita da corrupção como coadjuvante.
O poder democrático requer a divergência, o cotejo e o choque de opiniões, submetidos à regra de que as maiorias decidem os impasses, respeitadas as leis, inclusive o direito das minorias e das pessoas. A corrupção do Estado impede a aferição veraz e livre das maiorias eleitorais, que passam a ser formadas graças aos fluxos financeiros advindos da roubalheira institucionalizada.
Podem ter razão abstrata os que pedem eleições gerais já. Mas como fazê-las agora sem romper a Constituição? A renúncia é ato individual de vontade que foi respondido com um rotundo não! O caminho da anulação das eleições de 2014 pelo TSE deve continuar, mas ele pode ser objeto de recurso ao STF, o que retardaria a decisão. Se esta ocorrer em 2017, prevalece o texto da Constituição que prevê eleições do presidente pelo Congresso se o tempo de mandato a se completar for de dois anos ou menos. Se houver contestação apelando-se à legislação infraconstitucional que define a eleição indireta apenas no caso de faltarem até seis meses para o término do governo em causa, da mesma maneira caberá demanda protelatória no STF.
A paralisia da ação governamental e a marcha cruel da crise econômica, que desorganiza a sociedade, impõem que se comece logo a reconstruir o futuro. Haverá líderes capazes de tal proeza? Só o tempo dirá. Para isso precisaremos de um mínimo de consenso entre as forças e lideranças sociais e políticas, inclusive as até agora dominantes, afastados os que tenham comprometimento pessoal com os malfeitos que arruinaram o povo, as empresas e o Estado. Nenhum compromisso para o futuro que esteja baseado no “cala a boca” das investigações (seus eventuais abusos devem ser corrigidos por decisões do Supremo) será capaz de reacender o que é essencial para o nosso futuro: a competência na condução do Estado, a confiança e o apoio da sociedade. Sem maniqueísmo, sem salvacionismo e sem pretensões hegemônicas.
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Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República
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