- O Estado de S. Paulo
Já imaginaram se qualquer presidente da Câmara puder anular atos votados por um plenário de 513 deputados? Num dia, anula o processo de impeachment de um presidente da República. No dia seguinte, a vigência de uma emenda constitucional. No terceiro, a aprovação de uma lei ordinária. Seria trágico se não beirasse o cômico. Ou, ao contrário, seria apenas cômico, não flertasse perigosamente com o trágico.
Para completar o conjunto da obra, foi um presidente interino, questionado desde sempre e à beira de ser substituído por seus pares, quem decidiu anular o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, aprovado por 367 votos em plenário e já encaminhado à avaliação e posterior julgamento do Senado Federal. Dando certo, o tal interino, Waldir Maranhão, poderia cancelar leis, MPs, emendas constitucionais...
Maranhão poderia ser apenas um político folclórico, que oscila entre extremos, ora pau-mandado do presidente afastado da Câmara Eduardo Cunha, ora do governador maranhense Flávio Dino, mas é pior do que isso. Era a favor do impeachment de Dilma até as vésperas, mas deu uma cambalhota e votou contra. Certamente, não por uma profunda reflexão patriótica.
Agora, Maranhão foi só um instrumento do Planalto, de onde partem os movimentos combinados para anular o impeachment no tapetão. Ele viajou a São Luís, voltou com Dino a Brasília num jatinho da FAB e foi direto para uma reunião com o advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, de onde saiu com o texto pronto. Foi só explodir a notícia do ato dele que Dilma interrompeu mais uma solenidade constrangedora no Planalto para fingir surpresa. Ela “acabava de saber” que o impeachment poderia ser anulado, pediu calma e citou o clima de “manhas e artimanhas”.
Quando o impeachment segue todo o rito do Supremo, passa pela comissão e pela maioria do plenário da Câmara, é acatado pela comissão e chega ao plenário do Senado, com transmissão ao vivo pela TV, é “golpe”. Mas, quando um deputado inexpressivo, circunstancialmente na presidência da Câmara, decide anular um processo dessa dimensão sem consultar a assessoria técnica do Congresso ou os líderes partidários, aí é só “manha”, ou “artimanha”.
Para o presidente do Senado, Renan Calheiros, a tentativa de anulação do impeachment foi “uma brincadeira com a democracia”. Para o ministro do STF Gilmar Mendes, foi uma “Operação Tabajara”, “um pastelão”, um “ato circense”. E, no final do dia, prevalecia a sensação de que tudo não passou de uma “Batalha de Itararé” – aquela que não houve. Pode não ter havido, mas as bolsas sofreram, o dólar subiu e a imprensa internacional mais uma vez, e corretamente, mostrou ao mundo o clima bananeiro da política brasileira.
O Congresso tomou-se em brios com tantas manhas, artimanhas e golpes e fechou um cerco para extinguir o ato de Maranhão e livrar a presidência da Câmara de Maranhão. No Senado, Renan ouviu os líderes, rebateu os argumentos do interino da Câmara, ponto a ponto, e determinou a continuação do rito do impeachment – logo, da votação em plenário amanhã.
Na Câmara, os líderes afunilaram para duas reações: delegar à Mesa Diretora o engavetamento do ato de Maranhão e levantar uma questão de ordem argumentando que, como o afastamento de Eduardo Cunha não tem prazo e pode ser longo, é preciso eleger com urgência um presidente que possa substituir o presidente da República nos casos previstos em lei. Ou seja, a Câmara quer anular o ato de Maranhão e o próprio Maranhão.
Alto-Comando. O Alto-Comando do Exército estava reunido ontem – dentro do cronograma traçado desde o início do ano –, quando os generais souberam da decisão de Waldir Maranhão. A reação foi de perplexidade, mas o Exército continua mudo e longe da crise política. Como deve ser.
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