segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A cultura do remendo – Editorial / O Estado de S. Paulo

Criar e renovar remendos fiscais e tributários são algumas das principais funções dos políticos federais, quando têm de cuidar das finanças da União. O trabalho começa geralmente no Executivo, envolve os parlamentares e se encerra na formatação final do Orçamento. O ritual foi cumprido mais uma vez, na quarta-feira passada, quando o Senado aprovou o restabelecimento da DRU, a Desvinculação de Receitas da União, para dar ao governo um pouco mais de liberdade – e, supõe-se, de eficiência – no manejo de verbas no próximo ano. Cada renovação é trabalhosa, porque a DRU depende de emenda à Constituição, com duas votações na Câmara e duas no Senado. Além disso, as condições são sempre rediscutidas e alguma novidade é sempre imposta na negociação política. Mas o miolo do problema, a irracionalidade das vinculações constitucionais, nunca é atacado diretamente. As normas irracionais são suspensas parcialmente, e apenas por algum tempo – desta vez, até o fim de 2023.


Com a DRU restabelecida, o governo poderá usar livremente até 30% de um conjunto de verbas vinculadas, com efeito retroativo até janeiro deste ano. Com a desvinculação anterior, válida até o ano passado, o limite era de 20%. A liberação corresponde a R$ 117,7 bilhões no atual exercício financeiro, segundo o relatório do senador José Maranhão (PMDB-PB), mas o aproveitamento efetivo ficará abaixo disso. O governo poderá aproveitar o benefício amplamente a partir de 2017, com maior liberdade para gastar de acordo com suas prioridades. Uma novidade importante foi a extensão do mecanismo a Estados e municípios, com duas novas siglas (DRE e DRM).

A rigidez do Orçamento é um dos grandes obstáculos à boa administração pública no Brasil. A folha de salários é incomprimível, os gastos previdenciários são reajustados pelo salário mínimo, o sistema de aposentadorias é insustentável e há uma porção de vinculações legais. A destinação de verbas obrigatórias à educação e saúde é o exemplo mais conhecido de vinculação, mas há outros também relevantes, como as transferências para fundos de uso regional. Nada garante um padrão razoável de uso de todo esse dinheiro.

Constituintes podem ter tido boas intenções ao tornar certos gastos obrigatórios, mas é tolice confundir propósitos louváveis com racionalidade. Prioridades podem variar, mas esse fato é geralmente ignorado por quem defende vinculações. Além disso, despesas obrigatórias dispensam administradores preguiçosos de formular bons planos, programas e projetos e ainda abrem espaço para a ladroeira, como tem provado exaustivamente a experiência nacional. Se vinculação resolvesse problemas, o País teria educação e saúde muito melhores, porque os gastos têm sido geralmente elevados, pelos padrões observados nos países emergentes.

Também se usam remendos para consertar defeitos do sistema tributário. A Lei Kandir, criada em 1996, estendeu às exportações de produtos primários e semielaborados a isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A isenção originalmente era restrita aos manufaturados, uma bobagem enorme, especialmente num país com grandes vendas externas de produtos minerais e do agronegócio. Como a mudança imporia um custo aos Estados, foi preciso inventar uma transferência federal para os Tesouros estaduais. O esquema deveria ter durado até 2002, mas foi mantido e renovado. Preferiu-se manter o remendo a enfrentar o trabalho de uma revisão total do ICMS e, talvez, do sistema tributário.

Remendos foram também as desonerações concedidas a setores selecionados, nos últimos anos, com enorme custo para o Tesouro e pouquíssimo efeito no crescimento econômico. A desoneração da folha de pessoal de alguns segmentos é um exemplo de má improvisação. Uma política mais consequente envolveria a revisão das formas de financiamento da Previdência, mas, como tem sido normal, preferiu-se o caminho mais fácil e ineficiente. É a cultura do remendo.

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