- O Estado de S. Paulo
Não há entre nós uma maneira coletiva de ser e agir, uma disciplina estrita de obediência à lei
A ideologia é uma invenção da ideologia. Rodeada de armadilhas, é ímã para desafetos. Sua obstinação é ser contrapensamento e ferir a base da confiança da política, que é o que sustenta um país. Adia ao máximo a aceitação da regra do jogo que sugere respeitar o vencedor. A moldura do ringue é instigante e velha conhecida. O choque ideológico pode vir de qualquer lado: do vencedor, do derrotado, das Forças Armadas politizadas, da Polícia Federal autonomista, do Ministério Público açulador, do Supremo em erupção. Pode vir também da sociedade, dos sindicatos, das ONGs, das igrejas. Não há entre nós uma maneira coletiva de ser e agir, uma disciplina estrita de obediência à lei capaz de manter algo sólido como um princípio, aquele dom partilhado por todos que dá forma ao destino dos povos e configura a ética de uma nação.
Todos fazem parte do sistema nacional de poder. E embora sem condição de precisar bem a origem dos movimentos de partilha e fratura do novo governo, é possível identificar sinais da construção de um vazio, sem motivo aparente, já querendo dividir o poder com quem ainda nem tomou posse. O Brasil está entusiasmado com instituições cheias de sentimento de poder - Forças Armadas, Polícia Federal, Ministério Público - e indiferentes a quem faz a lei, o desmoralizado Congresso Nacional.
Constitucionalmente, estabelecido para governar é o presidente da República. Há Poderes da união que gostam de definir a época em que vivemos. E avançam sobre as fissuras do sistema político e a erosão que a vida pública provoca na honra dos seus titulares nos últimos anos. Não se trata de fazer concessões aos poderosos ou deixar de ser iconoclasta com governantes de araque que nos levam à lona. Mas o patriotismo insuficiente do oposicionismo de insulto é como dizer “nós estamos aqui, aguarde o transbordar sobre você do nosso reservatório de desconfianças”. Enquanto isso, o que a outra civilização quer saber é se pode surgir por aqui algo como um Putin, um Erdogan, um Xi Jinping para podermos ser levados a sério, ou temidos. Alguns, melhor não, mas a marca de nossa democracia é a facilidade com que depreciamos o poder. De um lado, pela fragilidade que é a falta de consenso sobre a soberania das escolhas políticas; de outro, o dissenso entre partidos sobre se é lícito a um presidente incluir entre seus privilégios o de tornar-se desonesto no exercício do cargo.
O Brasil não sabe fazer um pacto entre suas elites talvez porque nenhuma seja hegemônica. Só um pacto de natureza civilizacional, elite do povo incluída, poderá fazer-nos caminhar para ser uma civilização. Três pontos iniciais: compromisso com a verdade, não depreciar a presidência de nenhum órgão público e total aversão ao erro. Na competição política, evitar espalhar dúvida, medo, suspeita sobre todos os que nos incomodam. A ideia de que tudo na vida é resultado de mecanismos repressivos embutidos na política e na economia é uma ideia ruim. Não há como deter a evolução, a própria natureza tem um forte componente liberal, competitivo. Quem se acha um salmão em rio poluído, envenenado pelos “outros”, experimente Freud: qual a sua responsabilidade na desordem de que você se queixa?
O conservadorismo é um freio de arrumação no caminhar desgovernado da humanidade. Entretanto, só vale se for coerente, ilustrado e dotado de propostas que capturem as questões pungentes. Enfiar ideologia em tudo, num culto da ação ao estilo militante, leva à sobrepolitização de todos os aspectos da vida. Com a crise, a entrega de proteções começou a falhar e é explicável que novas forças surgissem. Caiu o sistema binário com a globalização e as coisas saíram do controle da esquerda. As políticas identitárias viraram as costas para o povão desorganizado, o maior e mais sub-representado contingente eleitoral em todos os países.
O livre comércio foi muito longe e meio sem lei. Os jovens estão desprotegidos em seu desejo de ser estagiário, aprendiz, e gostaram de ouvir do futuro presidente que estão em seu plano de governo. Afinal, precisam que a política pública incorpore seu futuro, pois no contingente dos desempregados do presente são eles a maior parte. Precisamos correr para compensar nosso atraso e assim dar ao trabalhador condições de competir na brutal realidade moderna, em que o homem desconectado não será mais explorado, será irrelevante.
O liberalismo apropriou-se das bandeiras da igualdade e vinculou-as a tecnologia e comunicação. Claro que há limites, tanto para as políticas distributivistas, pois não há liberdade com igualdade total (os protegidos tornam-se improdutivos legais e sem autonomia); como para os compromissos sociais dos governos liberais, pois também não há igualdade com liberdade total (os competitivos são atropelados pelos ilegais). O desafio é garantir um espaço autônomo para a vida social, econômica e política, novas instituições de negociação, sem pensar em sair do jogo mundial.
Assim, atenção aos tratados ambientais, pois eles fazem parte do pacote exigido dos fornecedores para a venda de produtos agrícolas aos consumidores europeus. Além do mais, a Convenção do Clima tem forte simbolismo para o Brasil, foi aqui a primeira Cúpula da Terra, no governo Collor; logo, sem desculpa de ter conotação ideológica de esquerda. A Rio-92 teve seu tratado ratificado por 196 países em Kyoto, em 1997, o que criou, até hoje, a melhor imagem do Brasil no mundo. Tal fato fez de nossa habilidade diplomática, nessa área, um líder internacional do soft power ambiental.
O novo governo deve também ficar atento: a revolta do eleitorado não contém um basta ao Estado protetor, nem parece representar uma despedida do modelo econômico brasileiro - o Estado de compadrio - dos últimos 80 anos. Um bom problema, pós-ideológico, para o mais homogêneo Ministério da Economia desde Castelo Branco.
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*Sociólogo, Paulo Delgado é co-presidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio/SP.
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