- O Globo
A economia não se descola da política. Quer dizer, se descola às vezes, mas não aceita muito desaforo político
Há dois problemas fatais, especialmente para países em desenvolvimento, quando o dólar sobe: inflação e crise nas contas públicas. Mas não é automático. Esses problemas só ocorrem se já existe algum desajuste importante na economia local. Não é o caso do Brasil neste momento.
Comecemos pelas contas públicas. Imaginemos que o governo tem uma dívida externa de US$ 100, com taxa de câmbio a R$ 1 por dólar. Logo, o governo deve R$ 100 — e é isso que se deve ter com conta porque o governo vive em reais. Emite e arrecada impostos nessa moeda.
Imaginemos que o dólar tenha uma súbita alta, dobrando seu valor. A dívida do governo em dólares continua na mesma, mas salta para R$ 200. Ou seja, o governo precisa arrecadar mais reais — via impostos, emissão ou empréstimos locais — e reduzir todos os demais gastos para servir a mesma dívida em dólares.
É um clássico ajuste fiscal, aperto local para pagar os credores externos.
Aconteceu, por exemplo, em 2002, quando o dólar foi a R$ 4 (equivalente a mais de R$ 8 hoje), e o Brasil quebrou. O aumento de impostos e o corte de gastos para continuar pagando a dívida externa seriam brutais — ou seja, politicamente inviável.
Como o governo também não tinha reservas suficientes em moeda estrangeira, só restou uma saída: o Brasil foi ao FMI pegar um empréstimo de emergência de US$ 45 bilhões. O presidente era FH, e quem organizou a vaquinha foi Bill Clinton.
Não tem a menor chance de acontecer algo remotamente parecido. Começa que as reservas do Banco Central, na casa dos US$ 370 bilhões, são muito superiores à dívida externa do governo, da ordem de US$ 100 bilhões. Assim, quando o dólar sobe, a dívida em reais logicamente aumenta. Mas os ativos em reais (equivalentes às reservas) também sobem. Ou seja, hoje, como qualquer empresa ou pessoa que tenha dólares em casa, o governo brasileiro ganha dinheiro quando a moeda americana se valoriza.
Além disso, considerando todo o conjunto das transações com o exterior, incluindo a entrada de investimentos externos, o Brasil recebe mais dólares do que remete.
Logo, sem crise cambial (falta de dólares) e sem crise das contas públicas, aliás protegidas pelo teto de gastos.
Também não há sinais de inflação, que está rodando a casa dos 3% anuais, desde o começo deste ano, mesmo com a subida do dólar. Claro que alguns preços sobem, combustíveis e remédios, por exemplo, mas não há mais indexação.
Qual o risco aqui? Se houver contaminação ou ameaça disso, o BC terá que, primeiro, suspender a queda dos juros e depois, se a inflação subir mesmo, voltar a elevar a taxa básica de juros.
Não está no horizonte próximo.
Então, por que o dólar sobe?
Vários motivos. Primeiro, porque subiu no mundo todo, pela força da economia americana e pelo conflito comercial. Segundo, porque diminuiu a entrada de dólares no país via exportações e via aplicações no mercado financeiro. Com juros baixos aqui, deixou de ser atraente trazer dólares e comprar títulos do governo. Pelo mesmo motivo, passou a ser interessante para empresas locais liquidar os empréstimos tomados em dólar.
Tudo isso até que seria normal, não fossem as reações do governo. Quando o ministro Paulo Guedes diz que é bom se acostumar com o dólar alto, quer dizer o quê? R$ 4,30? R$ 4,50?
Só tem um jeito de saber. Especular no mercado. Foi o que os operadores fizeram, puxando a cotação para cima, obrigando o BC a vender dólares. Os tais ruídos de comunicação.
Mas como bobagem pouca é insuficiente, veio a declaração sobre o AI-5.
A declaração, de imediato, não deveria mover o dólar, nem para cima nem para baixo.
Mas o ministro Guedes citou o AI-5 como possível resposta a distúrbios como o do Chile, pedidos por Lula. Ora, o peso chileno está em forte desvalorização — maior que a do real — justamente por causa da instabilidade política e institucional.
Junte as percepções e se entende o duplo desastre cometido por Guedes. E que mostra mais uma vez: a economia não se descola da política. Quer dizer, se descola às vezes, mas não aceita muito desaforo político.
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