- Folha de S. Paulo
Que se proíba o controle de balneabilidade, essa coisa de comunista
A Austrália tem um mar de Coral, pura poesia. Os atlas argentinos nomeiam o Atlântico Sul como mar Argentino, pura imaginação geopolítica. Numa derivação conceitual equivocada, os militares deram de chamar nosso mar territorial “Amazônia Azul”. Sugiro o realismo: mar dos Coliformes Fecais.
A Folha reuniu as informações, praia por praia. De norte a sul, os 7.367 km do litoral brasileiro formam a mais extensa faixa de poluição oceânica por águas de esgoto do mundo. É como se os Bolsonaros —o pai, os filhos e o espírito santo, que mora na Virgínia— tivessem discursado sequencialmente, do Oiapoque ao Chuí, envenenando um mar sem fim. Mas, de fato, a culpa (ainda) não é deles: o estado de nossas praias reflete os valores da política nacional.
As praias queridas da minha infância (Gonzaguinha, em São Vicente, Perequê-Mirim, em Ubatuba) estão imundas, assim como as dos meus 20 anos (Trindade, em Paraty, Farol da Barra, em Salvador, Lagoa da Conceição, em Florianópolis). As dos meus 40 (Porto de Galinhas, em Pernambuco, Morro de São Paulo, na Bahia) já rumam ao mesmo destino.
No Brasil, apenas 45% dos efluentes coletados são tratados. Grande parte do restante segue, pelos rios, até o mar. O cenário deprimente deteriora-se cada vez mais. No conjunto do litoral, em 2019, 35% das praias são classificadas como ruins ou péssimas e 27% como regulares.
Nos 31 municípios definidos como prioritários pelo Ministério do Turismo, aqueles com maior visitação, 42% das praias estão ruins ou péssimas. Boas, 28%. O retrato decorre de um padrão de urbanização costeira linear e predatória com o despejo generalizado de esgotos nos cursos d’água.
As atenções, nos últimos meses, concentraram-se no “inimigo externo”: as manchas visíveis, pretas, do óleo misterioso derramado em alto mar. Ricardo Salles acusou os “comunistas” (ONGs, Venezuela) pelo ataque bioquímico.
Nesse passo, esquecemos do “inimigo interno”: os invisíveis microrganismos patogênicos que contaminam águas azuis como o círculo interno da bandeira nacional. Limpamos as manchas, pintamos a fachada.
Duas quadras atrás da Boa Viagem, águas de esgoto correm numa vala fedorenta a céu aberto. Quase inexistem praias limpas em Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, as maiores metrópoles costeiras. Mas os coliformes espalham-se também no entorno litorâneo de cidades médias e povoados, especialmente junto à foz dos rios e córregos.
Os efluentes avançam por Ilhabela, pela Costa do Descobrimento, pela Restinga da Marambaia. Que tal, na bandeira, trocarmos as estrelas pelos desenhos da Escherichia coli, da Enterobacter cloacae, da Klebsiella pneumoniae?
Segundo a Constituição, o saneamento básico é responsabilidade compartilhada da União, dos estados e municípios. A lei 11.445, de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais de saneamento básico, prevê a obrigação de fornecimento universal de esgotamento sanitário. É letra morta, afogada nas fezes.
No longo ciclo de expansão, do início do século a 2014, sob a euforia do pré-sal e dos preparativos da Copa, o esgoto correu solto para os rios, em condomínios litorâneos dos ricos e periferias pobres que se alastravam. Pela esquerda e pela direita.
Há algo aí que vai muito além do meio ambiente. Nosso Estado organiza o conflito pela distribuição de benesses, privilégios, subsídios e rendas privadas, mas não cuida dos bens e direitos públicos. A degradação das praias acompanha o roteiro da apropriação particular de várzeas, mangues e morros, à sombra da lei da guerra de todos contra todos, no nosso perene faroeste caboclo. Brasil acima de tudo: que se proíba o controle de balneabilidade, essa coisa de comunista.
Milhões de brasileiros passarão o Ano-Novo no mar dos Coliformes Fecais. A erisipela, a diarreia, a disenteria, a cólera e a febre tifoide vêm depois.
*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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