Para ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, nova condução da diplomacia com alinhamento aos EUA pode prejudicar exportações do Brasil
Cássia Almeida | O Globo
RIO - O ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) Rubens Ricupero afirma que a mudança na postura diplomática brasileira, de apoio aos Estados Unidos após a escalada de tensões com o Irã, trará consequências negativas para o comércio exterior brasileiro. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, o diplomata de carreira lembra que Donald Trump tem ameaçado exportações do Brasil enquanto o Irã é grande cliente do nosso agronegócio. E alerta que o Brasil voltou a ficar vulnerável nas contas externas, o que já causou crises cambiais no passado, limitando o crescimento.
• Quais os impactos do conflito para a economia mundial?
Há basicamente dois cenários possíveis. O primeiro é que o conflito seja contido no nível atual, dado pela resposta limitada do Irã e a reação comedida de Trump (Donald Trump, presidente dos Estados Unidos). Os partidários do presidente americano alegam que o Irã, debilitado pela ação cumulativa das sanções econômicas e pelos recentes protestos internos, não terá condições de ir além de uma reação fraca e simbólica como o ataque sem vítimas às bases dos EUA no Iraque. De acordo com essa visão, passado algum tempo, o Irã será obrigado a se sentar à mesa de negociação, o que levaria cedo ou tarde, à sua capitulação. Nesse caso, os impactos negativos sobre a economia mundial seriam de pouca monta e de curta duração. O cenário oposto é o dos que pensam que o governo iraniano apenas dissimula o jogo, limitando-se, num primeiro momento, a uma reação débil a um golpe que não esperava, enquanto prepara com vagar alguma represália de envergadura, que poderia visara personalidades do governo americano ou ações no território dos EUA. Se isso for verdade, haveria uma aparência de normalidade por um tempo mais ou menos longo até que a situação se deteriore novamente. De todo modo, enquanto não se registrar uma verdadeira distensão na relação EUA-Irã, a incerteza prevalecerá e com ela suas consequências de desestímulo à retomada da economia mundial.
• O comércio mundial tende a diminuir e o protecionismo se espalhar?
Independentemente do que ocorra no conflito com o Irã, o comércio internacional já acusou, por outras razões, declínio sensível em 2019, conforme atestado pela Organização Mundial de Comércio. Em outubro, a OMC calculou que o comércio no ano passado se expandiria apenas 1,2% (em contraste com a estimativa de 2,6% feita em abril de 2019). Para 2020, a OMC reduziu a previsão de crescimento para 2,7% (abaixo dos 3% originalmente esperados). O motivo fundamental para a baixa nas estimativas deriva das tensões desencadeadas, sobretudo, pelo conflito Trump-China e suas consequências na Ásia e outras regiões. Espera-se até meados de janeiro a assinatura da primeira etapa do acordo entre EUA e China para resolver o contencioso entre os dois países. Dependendo da confirmação do acordo, de sua consolidação e de sua eventual expansão a etapas novas, o comércio mundial poderia ou não ganhar algum fôlego. Uma nota de necessária cautela é o efeito que terá sobre o comportamento de Trump a proximidade das eleições nos EUA. Essa proximidade o levará a moderar seu discurso e ação protecionista em relação não só à China, mas também à União Europeia, ao Japão, ao México, ao Canadá, a outros parceiros? Ou, ao contrário, tentará expandir as exportações americanas a fim de reduzir o déficit comercial, como já conseguiu no fim de 2019? Dada a imprevisibilidade do personagem, é arriscado formular previsões sobre a possibilidade e intensidade de uma recuperação do comércio internacional em 2020.
• A tensão global vai afetar economia brasileira?
No ano passado, a economia mundial em nada ajudou a economia brasileira, uma vez que registramos queda acentuada nas exportações, nas importações, no saldo comercial e outros indicativos. Em caso de agravamento do conflito com o Irã, é claro que o impacto sobre a recuperação da economia brasileira se faria sentir de modo mais forte. Sobretudo porque não se deve esperar a curto prazo nenhuma melhora no comércio com a Argentina, importante para a recuperação da indústria .
• A mudança na diplomacia brasileira, de abandonar a neutralidade nesses conflitos pode reduzir as exportações?
O endosso pelo Brasil à ação agressiva de Trump cria riscos para as exportações brasileiras ao Irã, um dos dois principais importadores de produtos agrícolas (milho, proteínas animais). Além dos aspectos morais (apoio a um crime, a um assassinato, a um ato de terrorismo de Estado) e políticos (alinhamento temerário com política capaz de conduzir à guerra), a atitude do governo Bolsonaro contraria os interesses comerciais brasileiros, já que hostiliza um mercado importante por meio do endosso a um país, os EUA, que são o único parceiro a já aplicar sanções ilegais contra nossos produtos (aço, alumínio), o único a nos ameaçar de novas sanções (as declarações sobre desvalorização da moeda), o único a descumprir promessas anteriores (abertura do mercado à carne bovina), o único que talvez dentro de poucos dias alcançará um acordo com a China capaz de desviar compras chinesas de produtos brasileiros (soja, milho, carnes, etanol, algodão) para um nosso concorrente, os americanos. Onde está nisso o interesse nacional?
• O déficit em transações correntes está em 3%, há risco?
Existe perigosa complacência de tentar minimizar a seriedade potencial da deterioração do balanço de pagamentos mediante dois argumentos: de que as reservas ainda se situam em nível confortável; que o Investimento Estrangeiro Direto (IED) tende a superar os déficits mensais em conta corrente (contas com o resto do mundo). Esses argumentos buscam esconder o mais grave: a dinâmica desfavorável de quase todos os indicadores. O nível das reservas é retrato do passado, reflete a fase em que o país acumulava excedentes significativos na balança comercial. As reservas tendem agora a diminuir até mesmo em razão das ações do Banco Central contra a volatilidade excessiva do câmbio, como ocorreu faz pouco tempo. Infelizmente, em 2019, tivemos vários fatores convergindo para agravar a situação da balança: queda sensível no volume e no valor das exportações; redução no valor e volume das importações, resultando em contração do volume do comércio nos dois sentidos; expansão significativa do déficit em transações correntes; insuficiência dos investimentos estrangeiros diretos para cobrir o déficit em alguns meses; saída do Brasil da soma recorde de mais de US$ 44 bilhões (fluxo cambial), em desmentido à retórica oficial relativa ao interesse de investidores estrangeiros por ativos brasileiros. O que torna o quadro mais preocupante é que, no ano passado, o comércio exterior se beneficiou de fatores que não se devem repetir, entre eles, o aumento das compras chinesas de produtos agrícolas do Brasil devido ao conflito agora em vias de superação com o governo Trump, a intensificação de importações chinesas de carnes brasileiras durante a fase mais intensa da incidência da peste suína. Outro aspecto que convém não esquecer é que, em razão do crescimento anêmico da economia brasileira em 2019 (1,1% talvez), não se fez sentir pressão de aumento das importações, o que seguramente mudará caso o ritmo de expansão se acelere. Todos esses fatores mostram que o Brasil está em vias de perder um dos poucos indicadores positivos que a economia ostentava: a situação do balanço de pagamentos, origem de muitas das crises brasileiras no passado.
• O que se pode fazer?
Para essa ameaça, não existe remédio seguro a curto prazo. A liberação comercial não é uma panaceia; mesmo que o país consiga acelerar a assinatura de acordos comerciais, num primeiro tempo isso vai agravar a situação da balança dada a falta de competitividade crônica de muitos setores de nossa economia. Daí a gravidade das ações do governo em meio ambiente, Amazônia, povos indígenas, evocação de AI5, que assustam investidores e parceiros econômicos no exterior.
• Se o conflito se agravar, a cotação do petróleo dispara?
Se houver um conflito de alta intensidade no Oriente Médio, é óbvio que as cotações do petróleo vão disparar. É verdade que o aumento de produção petrolífera nos EUA e em outros países, inclusive o Brasil, reduziu o grau de vulnerabilidade quase total em relação ao Oriente Médio que existia nos anos 1970, quando houve os dois choques do petróleo (1973 e 1979). Mesmo assim, um grande conflito trará graves perturbações ao tráfico marítimo, ao preço do petróleo, ao crescimento da economia.
• O acordo do Mercosul com União Europeia corre risco?
O acordo Mercosul-União Europeia se encontra numa espécie de “banho-maria”. Falta terminar parte considerável do acordo, que, é bom lembrar, ainda não foi nem sequer assinado. O que se concluiu no ano passado foi a negociação geral. Nas condições atuais de conflito do governo brasileiro com a França de Macron (Emmanuel Macron, presidente da França), à luz das resoluções votadas pelos parlamentos na Áustria, na Irlanda, em outros países, não se vislumbram condições a curto prazo para concluir o que falta ao acordo e submetê-lo à aprovação e ratificação primeiro do Parlamento Europeu, em seguida dos parlamentos dos 27 países membros.
• Os organismos multilaterais estão perdendo força, principalmente a OMC?
O enfraquecimento da OMC já um fato. Desde dezembro, o Órgão de Apelação da OMC está impossibilitado de operar em razão da oposição dos EUA à substituição dos juízes que terminaram o mandato. O enfraquecimento da OMC é, acima de tudo, obra do governo Trump, ao qual o governo brasileiro se subordina de forma automática e contrária aos interesses nacionais. É o que poderemos ver em breve, caso o acordo a ser assinado pelos americanos com a China provocar, como se espera, desvio de comércio de produtos agrícolas brasileiros em favor de concorrentes americanos. Nessa hora, o governo brasileiro não terá a quem se queixar pois o sistema de solução de litígios da OMC terá sido já desmantelado por iniciativa de Trump.
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