domingo, 12 de janeiro de 2020

Merval Pereira - Uma autocrítica necessária

- O Globo

Em e-book, ex-senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque diz que, ao sucumbir à corrupção, esquerda entregou à direita o discurso de honestidade que o povo desejava ver defendido

O ex-senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque sempre foi “um estranho no ninho” da política brasileira, sem se ligar a grupos sectários, nem ter medo de fazer críticas corporativas quando considerava necessário. Foi governador de Brasília e saiu do PT depois de ter sido demitido do ministério da Educação por telefone, foi para o PDT e hoje está no Cidadania, antigo PPS.

Sempre na esquerda, nunca cedeu ao populismo nem ao radicalismo político. Por isso, é capaz de fazer uma autocrítica tão necessária à esquerda brasileira. É o que faz no e-book “Por que falhamos”, desenvolvido a partir de um convite da Universidade de Oxford para que fizesse uma análise das razões que levaram Bolsonaro à presidência da República. A versão em inglês sairá em fevereiro com o título “How the left elected the right in Brazil” (“Como a esquerda elegeu a direita no Brasil”)

Para começar, ele dá razão ao ministro Paulo Guedes, colocando na mesma definição de democratas-progressistas os presidentes que governaram o país nos últimos 26 anos. “Apesar de partidos, ideologias e comportamentos diferentes, Itamar, Cardoso, Lula, Dilma e Temer vêm do mesmo grupo que lutou contra a ditadura e defendeu posições progressistas, em graus diferentes, na economia, na sociedade e nos costumes”.

Nesse período, que para ele poderia ter sido a “República dos Sonhos” e “acabou em pesadelo”, o Brasil “manteve a democracia, respeitou os direitos humanos, ampliou sua presença internacional, implantou programas de assistência com generosidade para a parcela mais pobre, conquistou e preservou a estabilidade monetária”.

Cristovam aponta os diversos erros cometidos, mas destaca o “erro mais visível para a opinião pública”: cair na corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades. “Abandonamos fins revolucionários e adotamos meios corruptos, trocando prioridades básicas, como escolas por estádios, para atender ao gosto imediatista e eleitoral da sociedade e também para receber propinas nessas construções. Fizemos isso para atender a promiscuidade entre nossos governos e empreiteiras e permitir o roubo de dinheiro público para financiar campanhas eleitorais ou enriquecer pessoas, muitas delas de nosso bloco democrata-progressista, mas também corruptas”.

Cristovam Buarque vê como conseqüência a perda da bandeira da ética e da confiança da população. “Sobretudo porque antes representávamos e nos apresentávamos como a reserva moral na política e prometíamos ser diferentes do comportamento dos políticos corruptos anteriores”.

Essa situação, escreve Cristovam Buarque, desmoralizou os líderes, degradou o Estado, trouxe a recessão, o desemprego e a violência “que permitiram à direita fazer o discurso de honestidade que o povo deseja. Entregamos à direita o discurso da ética, do emprego, da segurança, do crescimento, do valor da moeda”.

Cristovam Buarque cita escritor espanhol Jorge Semprún - “Nossa geração não está preparada para se recuperar do fracasso da União Soviética” - para dizer que “a nossa, no Brasil, ainda menos para se recuperar do fracasso dos governos que se sucederam entre 1992 e 2018”.

Admite que começa a sofrer “constrangimentos por termos um governo, escolhido pelo voto, que nos leva ao isolamento no cenário internacional. Sinto constrangimento, como democrata-progressista, por não termos oferecido ao eleitor uma alternativa de governo confiável para levar nosso povo na direção do futuro desejado e compatível com a marcha dos tempos atuais”.

Cristovam admite que o eleitor “fez essa trágica escolha como recusa aos governos que defendi e dos quais participei. O que me leva a perguntar em que erramos, a ponto de empurrarmos o eleitor ao gesto desesperado de optar pelo atual governo para fugir de nós, mesmo que isso sacrifique nosso povo e o Brasil ao longo de anos”.

E conclui que “não estivemos à altura do desafio que a história e os eleitores nos ofereceram”.

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