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Folha de S. Paulo
Narrativa
de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada
A eclosão da
Covid-19 em Wuhan, em dezembro de 2019, foi muito mais ampla do que
se imaginava. Naquele mês, circulavam ao menos 13 variantes da cepa A do novo
coronavírus na cidade chinesa, uma indicação de que a doença já se difundia,
silenciosamente, havia tempo. A descoberta
da missão da OMS na China lança luz sobre a transformação de
uma epidemia localizada na mais dramática pandemia desde a gripe espanhola.
O
percurso derivou de uma conjugação de fatores políticos e biológicos. Sob o
peso de um lockdown aplicado com a força implacável de um Estado
totalitário, Wuhan emergiu da onda de contágios com poucos milhares
de mortos. As cifras modestas desarmaram os espíritos no resto do mundo,
semeando a complacência inicial. Daí, em março de 2020, uma avalanche de óbitos
atingiu a Lombardia, deflagrando o lockdown italiano, logo replicado em
diversos países europeus.
Hoje
sabemos que o desastre não seria tão trágico sem a mutação D614G, sofrida pelo
vírus na Europa, fonte das variantes dominantes no resto do mundo. O
coronavírus da cepa “original” (A) era menos transmissível que o B.1, difundido
fora da China. Não é preciso ser um Estado totalitário para impor um lockdown
decisivo. A diferença entre a China e a Itália situou-se na esfera da biologia.
Mas o fenômeno desvenda a escala das responsabilidades políticas da China.
A árvore de
mutações virais não tinha sido desenhada em meados de 2019.
Naquele ponto, diante do chocante contraste entre a taxa de óbitos em Wuhan e
na Lombardia, analistas suspeitaram que a China escondia pilhas de cadáveres.
Sabe-se, agora, que isso não ocorreu.
Obcecado
pelo segredo, hipnotizado por cálculos de prestígio, o regime chinês suprimiu a
notícia dos primeiros casos detectados e ocultou a extensão dos contágios. O
tempo perdido propiciou a disseminação subterrânea do vírus fora da China e a
eclosão das variantes que vergaram o mundo inteiro.
Vírus
mudam sem parar, mas só prevalecem as mutações que aumentam suas oportunidades
de reprodução. Normalmente, essa regra evolucionária reduz a letalidade, pois
matar o hospedeiro contribui negativamente na velocidade de transmissão. A
regra, porém, parece não valer para o novo coronavírus porque a fase de
contágio intenso se dá nos dias iniciais da doença, quando a carga viral
concentra-se na garganta. Assim, do ponto de vista do vírus, uma letalidade
maior não traz desvantagens.
Desse modo, explica-se o surgimento recente de variantes não só mais
transmissíveis como, também, mais letais
no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil. As novas ondas
pandêmicas resultam, ao menos em parte, da trajetória evolutiva de um vírus que
se espalhou por toda a humanidade, expandindo suas oportunidades de mutação.
A história da pandemia, que começa a ser contada, impugna o elogio da China. A
narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está
errada. A verdade é que o regime chinês lidou com um vírus menos eficiente.
Inversamente, é falsa a afirmação de que o Ocidente fracassou no combate à
pandemia. A verdade é que, por culpa da China, reagiu tardiamente, quando
a Covid já se
disseminara nas sociedades, e enfrentou variantes mais
transmissíveis do vírus.
2021,
Ano 2 da pandemia, abre a etapa da imunização. A China,
triunfante no Ano 1, vacina em ritmo lento, enquanto EUA, Reino Unido e, logo,
União Europeia, protegerão antes suas populações.
A
balança geopolítica tende a se inclinar para o lado das sociedades imunizadas,
que poderão reabrir com segurança suas economias e suas fronteiras. Mas, no fim
das contas, tudo depende de uma escolha política crucial de Joe Biden. Se os
EUA se fecharem no nacionalismo vacinal, perderão sua vantagem potencial. Se,
pelo contrário, liderarem o esforço de vacinação dos países em desenvolvimento,
virarão o jogo.
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