Correio Braziliense
Muito do que estamos vivendo na política tem
raízes antropológicas. É o caso das milícias, que nunca tiveram uma relação tão
promíscua com os órgãos de coerção do Estado como no governo Bolsonaro
Entre os anos de 1852 e 1853, Manoel
Antônio de Almeida publicou folhetins que se tornariam, mais tarde, a obra
Memórias de um sargento de milícias, um clássico do nosso romantismo. Órfão de
pai aos 11 anos, era filho de portugueses: o tenente Antônio de Almeida e
Josefina Maria de Almeida. Sua infância muito carente o fez cronista da baixa
classe média carioca. Jornalista e escritor, com muitas dificuldades
financeiras formou-se em medicina, em 1855, mas nunca exerceu a profissão.
Morreu aos 31 anos, no naufrágio do navio Hermes, em 1861. Escreveu apenas mais
um livro, Dois amores, além de ensaios, contos e poesias.
Ao ignorar a classe média alta e o maniqueísmo elitista com que era retratada à época, Manoel Antônio de Almeida descreveu a vida real do povo e a figura do malandro — pobre, sem ideal, vivendo da sorte e de oportunidades que surgiam. O cenário do romance é o Rio de Janeiro da corte de Dom João VI, que permaneceu no Brasil de 1808 a 1821. O grande protagonista da história é um anti-herói, Leonardo, filho de imigrantes portugueses — Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça —, que se conheceram no navio que os trouxe ao Brasil “após uma pisadela e um beliscão”.
Flagrada pelo marido em traição, Maria das
Hortaliças foge de casa; Leonardo Pataca abandona o pequeno Leonardo, que é
criado pelo padrinho, um barbeiro, e sua madrinha, uma parteira que adorava
missas. Transgressor, Leonardo é protegido por D. Maria, uma velha rica, tia de
Luisinha, que deixa de ser sua paixão quando surge a bela mulata Vidinha, cujos
primos arranjam uma forma de Leonardo ser preso pelo major Vidigal, mas ele
consegue escapar.
O major jura prender Leonardo por
malandragem, mas a madrinha consegue um emprego para Leonardo na ucharia-real,
emprego que ele logo perderia por ter tido um flerte com uma das criadas do
rei. Leonardo acaba preso por Vidigal, que fará dele, porém, um granadeiro de
sua patrulha. Mesmo como soldado, Leonardo não deixa suas malandragens e acaba
pregando uma peça em seu superior, o que lhe levará à nova prisão, de onde só
sairá com nova intervenção de sua madrinha, Dona Maria, e de Maria Regalada,
que era um antigo amor de Vidigal. Livre, por influência de ambas, Leonardo
torna-se sargento da companhia de granadeiros. Como sargentos da ativa não
podiam se casar, Leonardo recebe o título de sargento de milícias e casa-se com
Luisinha, a sobrinha de D. Maria, que havia ficado viúva.
Manoel Antônio de Almeida descreve a
invenção da malandragem. Na visão do antropólogo Roberto Da Matta, o Brasil
urbano é carnavalesco (“não tem conserto”; “ninguém quer trabalhar”, “deixa
tudo para amanhã”); autoritário, da regulamentação, do cartório e do arbítrio;
e místico, do “outro mundo”, do “carma”, da “reencarnação”, do sobrenatural. De
um lado, o Estado-nação, com território, bandeira, moeda, Constituição; de
outro, a sociedade sem valores, com seus mitos e rituais.
Desarmamento
Muito do que estamos vivendo na atual conjuntura
política tem raízes antropológicas. É o caso das milícias, que nunca tiveram
uma relação tão promíscua com os órgãos de coerção do Estado como no governo de
Jair Bolsonaro. Esse é um problema muito sério, inclusive em decorrência da
politização das Forças Armadas e de uma militância política bolsonarista armada
até os dentes, que já começa a se arreganhar contra o governo Lula, com
caraterísticas de uma milícia fascista. Segundo os repórteres Bruna Yamaguti e
Leonardo Cavalcanti, do SBTNews, o governo Bolsonaro, somente no período de
janeiro de 2019 a dezembro de 2022, liberou 1.100 armas por dia para o cidadão
comum.
No total, 1,6 milhão de armas foram
autorizadas pelo Exército e pela Polícia Federal. O aumento, se comparado aos
quatro anos anteriores — das gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer — foi de
88% (847 mil). O Exército, por meio do Sistema de Gerenciamento Militar de
Armas (Sigma), liberou 904.854 armas em quatro anos. Já a Polícia Federal
permitiu o registro e o porte de mais de 700 mil na gestão Bolsonaro, que
operou uma estratégia para armar a população.
No governo Bolsonaro, mais de 40 decretos,
portarias, instruções normativas e resoluções da Câmara de Comércio Exterior
flexibilizaram o Estatuto do Desarmamento, de 2003. O presidente Luiz Inácio
Lula da Silva assinou um decreto que reduz o acesso a armas e munições e
suspende o registro de novas armas de uso restrito de caçadores, atiradores e
colecionadores (CACs). Também suspendeu as autorizações de novos clubes de tiro
até a divulgação de uma nova regulamentação. Entretanto, a pasta está fora do
tubo.
Entre as restrições estabelecidas estão a
proibição do transporte de arma municiada, a prática de tiro desportivo por
menores de 18 anos e a redução de seis para três a quantidade de armas a que
cada cidadão comum tem direito. O novo governo também condiciona a autorização
de porte de arma à comprovação da necessidade. Além disso, todas as armas
compradas desde maio de 2019 devem ser recadastradas pelos proprietários em até
60 dias. Para reverter esse quadro, será preciso mexer no Estatuto do
Desarmamento e reafirmar o monopólio do Estado sobre o uso da força, o que
pressupõe apartar as Forças Armadas da política e restabelecer a plenitude da
hierarquia e da disciplina.
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