Folha de S. Paulo
Cuidado para que realismo reacionário não
suplante o idealismo progressista
A única "História do Futuro" que
leio com gosto é a de Padre Vieira. Logo à partida, ele observa: "Nenhuma
cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite,
nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos
futuros (...). As outras histórias contam as cousas passadas; esta promete
dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos
públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos
ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento" (Nota: o
sujeito de "chega" é "entendimento).
Essa obra de Vieira é uma vertigem sebastianista sobre o surgimento do Quinto Império, quando Portugal representaria, então, o sumo e o vértice da civilização. Não aconteceu, mas prefiro a imaginação que prodigaliza o triunfo àquela que barateia o caos.
Desde que Lula foi
eleito, as antevisões de uma iminente derrocada tornaram-se uma rotina em boa
parte da imprensa, e esta quinta, 2 de fevereiro, marca apenas o 33º dia
de seu governo.
Mal se desligaram as urnas do primeiro turno, e se asseverou que a futura
composição do Congresso antecipava a ingovernabilidade. Com efeito, o
ajuntamento de agora é o mais reacionário e ignorante da nossa história.
Ingovernabilidade? Na quarta (1º), elegeram-se
Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), hoje aliados do petista, para as respectivas
presidências da Câmara e do Senado. A costura da base de apoio nesta
legislatura começou ainda na passada, quando se votou a PEC da Transição. Onde
muitos anteciparam o Armagedom, com a vitória dos iníquos sobre o Deus da
responsabilidade fiscal, vi uma solução — dados, é claro!, "o tempo
presente, os homens presentes e a vida presente". É Drummond.
Exaltei à época, nesta coluna, o feito
inédito de um presidente eleito que comandava a aprovação de uma emenda à
Constituição ainda na vigência do governo que acabara de derrotar. Daria ao PT
as condições de interferir no comando de um futuro Congresso que, cabeça a
cabeça, prometia ser hostil —e dócil não será. É uma tolice saber se será a
economia ou a política a decidir o sucesso ou insucesso de Lula. Não podem ser
dissociadas, e há alternância na prevalência. Às vezes, é preciso dizer:
"É a política, estúpido!"
Vieira identificou o nosso apetite pela
"notícia dos tempos e sucessos futuros". E sempre há quem não se faça
de rogado, daí a fama dos gurus ainda hoje, invariavelmente picaretas. Então se
diz: "Ah, mas os problemas de Lula começam agora..." Ousaria dizer
que, em dois meses, ele viveu sucessos que valem um mandato. Enfrentou, por
exemplo, uma tentativa de golpe de Estado no oitavo dia de
mandato. A crise foi debelada. À esteira da barbárie, o presidente
substituiu o comandante do Exército. Isso não quer dizer que o "fator
militar" —ou que nome se dê à vontade de tutela— tenha desaparecido. O
problema é do Brasil, não apenas do presidente. Nasceu com a República. E a
resposta tem de ser nossa.
Há erros, é certo. Progressistas tendem a
achar que a superioridade quase sempre verdadeira de suas escolhas morais toma
o lugar dos fatos. E se descuidam do presente. É visível que o governo está,
por exemplo, lidando mal com as redes sociais —e o mesmo se diga sobre o PT.
Coloque-se na balança a enormidade de tudo e indaguem que lugar ocupa, na ordem
das urgências, chamar impeachment de "golpe" ou fazer pouco caso da
independência do Banco Central. Enquanto isso acontecia, a extrema direita
estava destruindo a reputação de Pacheco e inventando Rogério Marinho como candidato
viável ao Senado. E tudo poderia ter saído pelo pior.
Sei que cito bastante. É diálogo com o que
se escreveu antes. Desta feita, citarei a mim mesmo. Quanto mais os democratas
olharem para trás para avançar, mais os reacionários olharão para a frente para
fazer a sociedade retroceder. É preciso tomar cuidado para que o idealismo
progressista não seja suplantado pelo realismo reacionário. É uma lição de
"A Ideologia Alemã", de Marx e Engels. Vou voltar agora ao meu Vieira
e me ocupar depois do tempo presente, dos homens presentes, da vida presente.
Sem apocalipse.
3 comentários:
A grande vantagem da direita, de uma maneira geral, não só nas redes sociais, é que ela MENTE.
"Uma mentira pode dar a volta ao mundo, enquanto a verdade ainda calça seus sapatos." Mark Twain
Vejam quantas voltas deu a mentira de virar jacaré, no caso da vacinas...
As voltas dos 100 anos de sigilo em geral e no caso pazzuello...
As voltas do não-genocídio ianomami...
As voltas de q os bozo são religiosos e q adoram um deus do amor...
As voltas de q não houve rachadinhas...
Etc., etc., ...
O povo brasileiro vai avançar com as ideias de direitos humanos, distribuição da riqueza, ecologia, energia limpa, desenvolvimento sustentável. E ao capitalismo resta o fundo do poço com o nazifascismo bundalelê: armas para todos, bandido bom é bandido morto, deus-pátria-e-família, "solução final" para os índios.
Azevedo e suas citações.
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