Folha de S. Paulo
Com a inteligência artificial, o conhecimento
e a ignorância aumentam
Casos de longevidade são casos de
curiosidade. Falo do que conheço. Gente com 80, 90, cem anos? Não foi apenas a
dieta, o jogging ou a medicina que prolongaram a vida. Foi a curiosidade: a
ambição constante de saberem um pouco mais do que sabiam no dia anterior. Se
isso é válido para os meus conhecidos, é válido para Henry
Kissinger, morto aos cem, que continuou pensando, escrevendo e publicando
até o fim. Um tema, em particular, ocupou os neurônios do cavalheiro na fase
crepuscular: a inteligência
artificial.
Nas palavras do seu biógrafo, o historiador Niall Ferguson,
faz sentido: se o poder destrutivo das armas nucleares ocupou grande parte da
sua vida, era inevitável que os desafios da inteligência artificial também
aparecessem no radar. O resultado dessa curiosidade pode ser lido no seu último
livro, "Genesis", que escreveu em coautoria com Craig Mundie e Eric
Schmidt.
É a existência humana que está em causa, argumentam eles. Não apenas no sentido mais básico da expressão. Há dimensões dessa existência que podem mudar de forma mais sutil. A história da humanidade é a história do seu desenvolvimento tecnológico, de como a espécie saiu da caverna, inventou a agricultura, criou cidades, melhorou os transportes, combateu doenças, pisou a Lua.
Mas, em todas essas etapas, o conhecimento
andou de mãos dadas com o entendimento. Os humanos eram, ao mesmo tempo,
criadores e beneficiários de uma tecnologia que
dominavam.
Não com a inteligência artificial. Nosso
conhecimento, em todas as áreas, será aumentado exponencialmente. Mas isso se
dará por processos que não entendemos. Teremos informação sem explicação.
Como argumentam os autores, viveremos um
futuro que será muito semelhante a um tempo pré-científico e pré-moderno, em
que os seres humanos aceitavam uma autoridade inexplicável. Qual o problema?
Ninguém falou em problema. Repito: os avanços serão exponenciais. Mas quem
pensa que a perda de estatuto intelectual dos humanos face às máquinas é um
mero detalhe está enganado.
Tradicionalmente, só Deus estava acima dos
humanos. Mas, aqui na Terra, os humanos estavam acima de todas as restantes
espécies. Essa hierarquia vai acabar no século 21. Seremos destronados como
modelos de inteligência. Estaremos preparados para o fim da nossa
singularidade? Para o fim do nosso narcisismo? O mesmo em termos políticos. Não
é preciso pintar cenários de catástrofe para esse mundo dominado pela
inteligência artificial. As coisas podem ser mais sutis.
Durante milênios, as nossas sociedades foram
sendo organizadas por princípios ou instituições que variaram menos do que
imaginamos. Não interessa se falamos de democracias ou autocracias. Nossos
regimes políticos seriam reconhecíveis por um grego do século 5º a.C.
Como seriam reconhecíveis os vícios e as
virtudes dos nossos governantes. O que existe neles de racional ou irracional,
pragmático ou irascível, louvável ou abominável. Um grego antigo, fascinado
pela ideia platônica de rei-filósofo, saberia reconhecer que as nossas
sociedades, tal como a dele, não conseguiram realizar esse ideal. Por quê?
Porque somos limitados. Não conseguimos
processar toda informação que existe; não conhecemos as leis da natureza
humana; não temos a sabedoria necessária para fazer as escolhas mais sábias.
Como lembrava o príncipe da Dinamarca, temos tanto de nobreza como de pó.
A promessa da inteligência artificial é a
promessa de um rei-filósofo, uma entidade capaz de fornecer respostas
perfeitas, suprindo as paixões humanas. Qual é o problema? Mais uma vez,
ninguém falou em problema. Mas como negar que existem dimensões da nossa
existência que podem ser tão importantes ou até mais importantes do que esse
utilitarismo digital? "Amo a justiça, mas amo também a minha mãe",
dizia Camus sobre a luta pela libertação da Argélia e seus métodos mais
radicais.
Como lembram os autores, conservar a nossa
humanidade perante a contingência pode ser a única forma de conservamos também
o nosso livre-arbítrio. De não sermos, enfim, meros escravos de um algoritmo.
Nas obras sobre a inteligência artificial, normalmente encontramos dois
extremos: um otimismo delirante e um pessimismo delirante, sem espaço para as
questões fundamentais.
"Genesis" é um livro raro porque
prefere as perguntas às respostas. Questiona se no futuro seremos nós a
alinhar-nos às máquinas —uma simbiose neuronal, como defendem os
transumanistas— ou se devem ser elas a alinharem-se aos nossos melhores valores
humanos. Isso implica saber que valores são esses e quem somos nós. A vida será
longa para quem procurar essas respostas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário