sexta-feira, 13 de junho de 2025

A regulação possível – Flávia Oliveira

O Globo

Conteúdos nas plataformas digitais ameaçam, sobretudo, a saúde mental e a vida de crianças e adolescentes

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria, nesta semana, para responsabilizar plataformas digitais por conteúdos que ameaçam, sobretudo, a saúde mental e a vida de crianças e adolescentes brasileiros. O Judiciário tardou quanto foi possível a decisão de que o Congresso Nacional se omitiu intencionalmente por, pelo menos, um par de anos. Flávio Dino, hoje no STF, era ministro da Justiça no ano (2023) em que o número de ataques a escolas bateu recorde no país: em 15 episódios de violência extrema, nove pessoas morreram e 29 ficaram feridas. Na quarta-feira, ao votar pela inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, ele lembrou que das redes sociais brotaram aqueles crimes.

Foi também anteontem que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentou em 49 páginas o diagnóstico sobre violência nas escolas a partir do mundo digital. A organização está habituada a mergulhar em estatísticas que envergonham o país: dos homicídios às dezenas de milhares todo ano à epidemia de feminicídios; dos registros crescentes de crimes sexuais e violência doméstica à multiplicação de mortes no trânsito e execuções cometidas por agentes da lei. Ainda assim, causou espanto a constatação de que, a partir de 2019, houve 29 ataques a escolas, sendo 2023 o ano mais letal — de 2001 a 2018, foram dez, nunca mais de dois por ano. Em quatro anos, os posts com ameaças a alunos, professores, diretores e escolas quase quintuplicaram. Até 21 de maio de 2025, o total de conteúdos de ódio passava de 88 mil — em todo o ano de 2023, foram 105.192.

Os pesquisadores listaram meia dezena de motivos que explicam a violência galopante em unidades de ensino. O aumento do extremismo disseminado por meios digitais é o primeiro deles. O estudo do FBSP e da Timelens também cita falta de controle e criminalização de discursos e práticas de ódio; promoção da cultura armamentista e glorificação da violência; prevalência de bullying, preconceitos e discriminações no ambiente escolar; falta de formação profissional para lidar com mediação de conflitos e convivência escolar.

O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Do Reino Unido, ganhou o mundo a série “Adolescência”, sobre o assassinato de uma jovem estudante por um colega radicalizado em ambientes de masculinidade tóxica na internet. Em quatro episódios, a obra mergulha na perplexidade da polícia, do sistema penal, da comunidade escolar e da família diante do crime. O presidente francês, Emmanuel Macron, prometeu proibir redes sociais para menores de 15 anos, em poucos meses, se a União Europeia (UE) não fizer o mesmo na região. O estopim foi a morte a facadas de uma assistente pedagógica por um adolescente de 14 anos em Nogent, leste da França. Na UE, há pressão crescente por regras mais rígidas para menores, em resposta à desinformação, ao assédio e à pornografia que se espalham pelas plataformas.

O estudo brasileiro mostra que meninos e meninas são vítimas do cyberbullying em igual intensidade. Nos últimos 12 meses, 12% deles e delas sofreram alguma ofensa. Mas são eles que mais ofendem: 17%, ante 12% das moças. Sem espaço para chorar ou conversar, tornam-se vulneráveis a criadores de conteúdo e comunidades que, sob o manto do acolhimento, os recrutam e radicalizam dentro de casa, do quarto. Um terço dos menores de 9 a 17 anos são autorizados a acessar a internet sozinhos em ambiente privado; oito em dez têm aparelhos próprios.

Letramento digital de pais e educadores é um caminho. Neste ano, entrou em vigor a lei que proíbe uso do celular em atividades não pedagógicas nas escolas. Executivo e Legislativo convergiram e produziram um texto que, aplicado, tem apresentado resultados promissores em aprendizagem, socialização e saúde mental. O governo lançou em fevereiro passado um guia para uso saudável de telas por crianças e adolescentes, espécie de bússola para os adultos: até 2 anos de idade, zero de telas; de 2 a 5, não mais de uma hora por dia; de 6 a 10, até duas horas; entre 11 e 17 anos, três horas diárias com acompanhamento familiar e uso consciente de redes sociais. Aqui o link. Nesta semana, o Ministério da Justiça revisou a classificação indicativa do Instagram no país. A rede, agora, é não recomendada para menores de 16 anos. É alerta, não proibição ou censura.

A preocupação é global e tem muita gente — no Brasil e fora — pensando em formas de proteger, principalmente, crianças e adolescentes de conteúdos criminosos. Está na Casa Civil o Projeto de Lei elaborado pelo MJ para adequar as plataformas digitais às determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Defesa do Consumidor, no caso dos golpes financeiros e contra a saúde. O STF construirá consenso para impor às plataformas digitais a retirada de conteúdos ofensivos sem necessidade de ordem judicial. Dino mencionou casos de crimes contra crianças e adolescentes, instigação ao suicídio, terrorismo e contra o Estado Democrático de Direito, além de perfis anônimos, robôs e postagens pagas. A judicialização ajuda, mas a lei é necessária e urgente. O Congresso tem de sair do muro.

 

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