O Estado de S. Paulo
A democracia, assim como o Estado de Direito,
não pode ser um tema distante da população; a desinformação e a descrença
alimentam os Estados iliberais
Em 2024, 2 bilhões de pessoas foram às urnas
em mais de 60 países, no maior comparecimento eleitoral da história da
democracia representativa. Paradoxalmente, o relatório de 2025 do V-Dem, índice
global sobre qualidade democrática, revela que eleições livres retrocederam em
25 países; a liberdade de associação, em 22; e o Estado de Direito, em 18. A
recessão democrática, observada desde 2010, se aprofundou: o nível de
democracia em 2023 voltou ao patamar de 1985 em todas as regiões do mundo,
especialmente na Europa do leste e na Ásia do sul e central. Hoje, cerca de 90
Estados vivem sob regimes autocráticos ou de tendência autocrática, onde estão
dois terços da população mundial. Estados amplamente democráticos não passam de
80.
A recessão se agrava com o surgimento de Estados iliberais – democracias sem direitos, nas quais governos são eleitos democraticamente, mas, uma vez no poder, alteram constituições para se perpetuar, restringem direitos, fragilizam a oposição e bloqueiam o pluralismo. Jogando o jogo, subvertem as regras. Tudo “dentro das quatro linhas”. É um f enômeno contemporâneo, de múltiplas trajetórias: Rússia, Turquia, Hungria, Romênia, Venezuela... A lista é longa. É como se a democracia sofresse de uma doença autoimune, até que os cidadãos perdem a capacidade de mudar governos democraticamente.
Segundo Viktor Orbán, primeiro-ministro da
Hungria, Estados iliberais preservam a ideia de liberdade, mas não a colocam no
centro da organização estatal. Em seu lugar, adotam uma “abordagem especial e
nacional”, com fundamento na homogeneização cultural, na hierarquia
tradicional, na polarização política e no nacionalismo identitário. Além disso,
agem de modo ambíguo: o legal e o autoritário se confundem; instituições
democráticas funcionam, mas capturadas. São os chamados Frankenstates – na
expressão da jurista Kim Scheppele, de Princeton –, monstros constitucionais
que misturam elementos democráticos com mecanismos autocráticos, priorizando o
poder sobre o Direito; são também kaquistocracias, a pior das formas mistas de
governo, nas quais os valores democráticos são ideias fora do lug a r , c o mo
d i r i a Robert o Schwarz, que servem ao propósito de iludir, de legitimar
pelo voto a autocracia.
Estados iliberais não surgem do nada. Estados
fracos, com economias voláteis, corrupção, desigualdade, pobreza e violência,
são bombas prestes a explodir. Em algum momento, dá-se a ruptura constitucional
(foi o que se viu no Leste Europeu, em partes da América Latina, no sudeste da
Ásia). Em contextos de crise econômica e descrença na política representativa,
líderes populistas prosperam com promessas de segurança, combate à corrupção e
redução da pobreza, mesmo que à custa da democracia. Tribunais regionais, como
a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tentam conter o avanço autocrático,
defendendo a independência do Judiciário, o devido processo legal e os direitos
das minorias. Mas sua efetividade é limitada, como se viu no caso do Peru sob
Fujimori. Em 2019, a Polônia recuou ante a condenação do Tribunal de Justiça da
União Europeia relativa à alteração da composição de sua Corte constitucional –
uma exceção. A reação mais eficaz tem vindo dos Judiciários nacionais. Onde o
Judiciário resistiu, o autoritarismo foi contido. Na Colômbia, em 2010, a Corte
constitucional impediu a reeleição de Álvaro Uribe.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF)
tem conduzido a responsabilização pela tentativa de golpe de 8 de janeiro de
2023. O mesmo não se observa no Congresso, onde tramitam projetos como o da
anistia e o de revogação dos crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A questão de saber se ações antidemocráticas
podem ser reprimidas não é nova. Os gregos praticavam o ostracismo contra
agitadores da pólis; os alemães, sob a Lei Fundamental de Bonn, a democracia
militante. No Brasil, a proteção ao
Estado Democrático ocorre por meio da chamada
democracia defensiva – uma forma de legítima defesa institucional, em que cabe
ao Judiciário definir, em situações excepcionais, os limites da repressão a
tais ações. Isso se torna mais difícil quando o Executivo e o Legislativo se
omitem ou são capturados por forças autoritárias. O Judiciário, então, se vê
isolado na defesa da democracia.
A democracia é complexa. Requer instituições,
procedimentos, representação, eleições periódicas, legalidade e participação.
Em tempos de recessão democrática, exige ainda mais: formação dos cidadãos,
participação política informada, maiores investimentos em educação de qualidade
para todos, acesso à informação, transparência dos governantes e prestação de
contas. A democracia, assim como o Estado de Direito, não pode ser um tema
distante da população; a desinformação e a descrença alimentam os Estados iliberais.
Nossas democracias podem decepcionar, mas não traem. Há sempre a possibilidade
de substituir governos. Já os Estados iliberais eliminam essa possibilidade.
Professora titular de Teoria do Estado da Faculdade
de Direito da USP
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