O prepotente arbítrio do regime autoritário implantado em nosso país em 1964 obrigou Juscelino Kubitschek a trilhar o caminho do exílio. Esse período da sua vida é menos conhecido, pois o foco generalizado das lembranças da sua trajetória são, muito compreensivelmente, os "anos dourados" da sua Presidência (1956-1961), na qual soube combinar democracia e desenvolvimento, descortinando, de maneira duradoura, novos horizontes para o País.
As memórias, que começou a redigir no exílio e só foram publicadas na segunda metade da década de 70, não tratam desse período. JK considerou-as um complemento da sua vida pública, pois estavam voltadas para narrar, em três volumes, "de onde veio" (A Experiência da Humildade, 1976), "como veio" (A Escalada Política, 1976) e "a que veio" (50 anos em 5, 1978). Tiveram o intuito de expor a especificidade de sua trajetória, tendo em vista que "mal deixou o poder se viu envolvido num temporal que não mais permitiu que a sua obra fosse examinada com isenção", como me escreveu em carta de 10 de fevereiro de 1972, comentando a minha tese de doutoramento de 1970 na Universidade de Cornell, nos EUA, na qual examinei a criatividade do seu bem-sucedido Programa de Metas.
JK faleceu em agosto de 1976. Em vida presenciou apenas a publicação do primeiro volume de suas memórias, que tiveram o título geral de Meu Caminho para Brasília. Pretendia dar continuidade à sua narrativa tratando do período subsequente de sua vida, o do temporal político que se seguiu à sua luminosa Presidência. Foi o que expôs Adolpho Bloch, seu dedicado amigo dos momentos difíceis e editor, na nota de abertura do 50 anos em 5. Nela menciona que daria sequência ao projeto editorial do qual foi patrono, incumbindo Carlos Heitor Cony, que participara da equipe do projeto, de elaborar um livro com base nas cartas, nas notas e nos apontamentos deixados por JK.
Cony desincumbiu-se da tarefa com o Memorial do Exílio, publicado em 1982, no qual narra os ocasos e as dolorosas sucessões de perdas que se seguiram à fulgurante escalada política de JK e examina os 976 dias no exílio, cumpridos em duas etapas: primeiro, em Paris e, depois, basicamente em Lisboa e Nova York.
Novas facetas do cotidiano do exílio de JK podem ser apreciadas em recém-lançado documentário idealizado por Carlos Alberto Maciel e dirigido por Bertrand Tesson e Charles Cesconetto, que tem como eixo um inédito depoimento de Maria Alice Gomes Berengas, sua dedicada e leal secretária no período francês da sua expatriação. O documentário transmite e contextualiza, com a contribuição de sua filha Maria Estela e de amigos, como o exílio foi penoso para JK.
Dante Alighieri, que morreu no exílio, fala do amargor do pão dos estranhos e da dureza de subir e descer a escada alheia (Paraíso, XVII). Dessa experiência vivida com dignidade por JK no exílio dou o meu testemunho, pois foi em Nova York, cidade que definiu como um triste "rinoceronte de aço", que o entrevistei, em 1966 para a elaboração da minha tese sobre o Programa de Metas.
JK jamais esqueceu as suas origens de menino pobre de Diamantina, mas nunca teve, mesmo quando jovem, o medo provinciano do diferente, tanto que nos anos 30, logo após a sua formatura em Medicina, estudou em Paris e viajou pela Europa e pelo Oriente. "Acreditava nos brasileiros, confiava no país", como escreveu seu biógrafo Ronaldo Costa Couto. Por isso, na sua trajetória pública, foi um nacionalista destituído de xenofobia, aberto ao que o mundo podia oferecer para o desenvolvimento do País. Entretanto, como escreveu a propósito dos caminhos do mundo, "uma coisa é viajar com o bilhete de volta no bolso", outra, como realçou, é o castigo, inventado pelos gregos, do ostracismo: "Ostracismo, exílio ou que nome tenha é a mesma coisa que arrancar uma árvore com todas as raízes e levá-la para ambiente diferente. É a mesma coisa que matá-la".
Para um homem público o exílio é uma dura provação e o ostracismo, lembrado por JK, significava para o indivíduo um duro desterro, um radical estranhamento de si mesmo.
O exílio é um mal de várias faces. Trouxe a JK a perda da condição de sustento de vida (lembrada no documentário); a privação da liberdade cívica, por obra da cassação do seu mandato de senador e de seus direitos políticos; a perda do convívio com os amigos, que tanto apreciava; a injustiça de ver a sua reputação contestada e injuriada pela ação política do regime militar; o cerceamento de sua liberdade da palavra até no exílio, pela lamentável ação dos serviços de inteligência do Brasil e da França (como mostra o documentário); e, muito especialmente, a dificuldade de encontrar a paz da alma (e JK, que era um homem de coragem, chegou a cogitar de suicídio).
O que sustenta um exilado e sustentava JK é a esperança do retorno - "que nos mira com um olhar doce e depois nos deixa esperar", como diz Polinices nas Fenícias, de Eurípides.
Tancredo Neves, no discurso em homenagem à memória de JK, lembrou que ele encontrou "a força da honra e da altivez para enfrentar e suplantar as maquinações do ódio" de que foi vítima no pós-1964. Ódio que nunca o caracterizou, pois foi uma personalidade democrática, generosa e tolerante que anistiou, no exercício da Presidência, os que tentaram derrubá-lo pela força das armas. Isso contribuiu para tornar o exílio, que o fragilizou, uma ainda mais imerecida penitência.
"O exílio", disse Tancredo, "é o preço que os grandes homens pagam para conseguir um lugar no coração da História. Eles são supliciados antes de serem glorificados", como o foram os Andradas, dom Pedro II e Rui Barbosa. Por isso, concluía que a ulceração do exílio foi o toque do trágico que faltava para compor a imagem histórica de JK. Foi a moldura de ouro de sua radiosa personalidade.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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