Costumo apreciar mais as regiões do que os países propriamente. Não sei de onde vem esse sentimento. Mas costumo. E diria ainda que, acima de tudo, gosto de aproximar regiões. Unir o que a geografia às vezes desuniu. Mais que a História, a arquitetura, a culinária, as artes uniram as pessoas. Por exemplo: Toscana, Alentejo e Campo das Vertentes. Três áreas que conheço relativamente bem e que são para mim como que geminadas. Regiões tão distantes uma das outras e ao mesmo tempo tão próximas! Pois a Toscana, o Alentejo e o Campo das Vertentes têm em comum a hospitalidade de seus habitantes, a delicadeza de seus montes e vales e a singeleza da arquitetura de suas cidades e vilarejos. Caso estou na Toscana, penso no Alentejo. Se me encontro no Campo das Vertentes, sonho com a Toscana. E se porventura eu me acho no Alentejo, logo me perco no Campo das Vertentes. Vá entender!
Essas aproximações ocorrem de maneira quase automática. Curiosamente, as três regiões são profundamente católicas. E o catolicismo, como sabemos, moldou como poucas religiões na História o perfil cultural de determinadas áreas. As igrejas rurais da Toscana, do Alentejo ou do Campo das Vertentes são o que existe de mais encantador em matéria de arquitetura da fé - se é que eu posso definir assim as igrejas. Curiosamente ainda, essas três regiões se apresentam como redutos quase inexpugnáveis das tradições populares - e talvez por serem tão belos e artísticos os homens até relutem em transfomá-los ou o fazem senão com muita lentidão. Normal. Quem não se apega à beleza, não é verdade? E o que dizer ainda da cozinha dessas regiões? O melhor é comer: tutu à mineira, sopa alentejana ou arrosto misto, o difícil mesmo é escolher.
Finalmente - e aqui vai mais uma curiosidade -, Toscana, Alentejo e Campo das Vertentes materializam três nacionalidades distintas. Na Toscana de Dante Alighieri nasceu a língua italiana - l´idioma gentile, fator fundamental na formação da futura identidade italiana. No Alentejo, Portugal se fez latino e árabe também, já que a região integrava a antiga Andaluzia muçulmana. Dir-se-ia que o Alentejo é uma espécie de ponto de interseção entre Ocidente e Oriente, com suas igrejas católicas redondas, caiadas de branco, à maneira de mesquitas. E um sol fervente: “Alentejo não tem sombra / senão a que vem do céu...”, diz a poesia do povo. E no Campo das Vertentes, bem, no Campo das Vertentes o Brasil sonhou com sua Independência, com Tiradentes à frente. A liberdade, ainda que tardia, começou a se esboçar ali, em meio àquelas paisagens graníticas da Serra São José e do Pico do Itacolomi.
Regiões também são nações. E as cidades também o podem ser. Évora, por exemplo, a capital do Alentejo, é uma síntese cultural complexa - e um verdadeiro presépio. Muito alva e limpa, Évora é uma cidade silenciosa, harmoniosa e, sobretudo, preservadíssima. Tanto que foi declarada, há alguns anos, Patrimônio Cultural da Humanidade. Uma construção com cerca de dois mil anos, o Templo de Diana é a principal atração da cidade, que possui ainda uma bela praça de corte renascentista, a Praça do Giraldo, tradicional ponto de encontro dos moradores e muito apreciada pelos visitantes. Em Évora todas as crianças estão na escola e não há idosos pedindo esmolas pelas ruas. Uma cidade humana, ternamente humana. Data da época dos romanos e os árabes a conheciam por Yevorah, que significaria, sugestivamente, cruzamento ou encruzilhada. Ebora dos romanos, yevorah dos árabes e finalmente Évora dos portugueses.
Muitas e uma só. Évora fica bem junto ao Algarve, que provém do árabe al-gharb ou Ocidente. Trata-se da região mais rústica de Portugal, e também a que mais impressiona o viajante, pela beleza de seus espaços e sua força telúrica. É cercada pela natureza, como de resto Estremoz e Elvas. O cenário é quase mouro: casas sempre caiadas de branco, com janelas amarelas, de um só pavimento, distribuídas por um sem-número de ruelas estreitas e tortas. Terra salpicada de oliveiras, o Alentejo poderia perfeitamente ilustrar qualquer página da Bíblia Sagrada. E isso seria válido para o Alcorão também, se este aceitasse imagens.
Uma das mais belas e antigas universidades da Europa fica precisamente em Évora. E foi lá, naquele espaço do século XV, que se verificou o Colóquio Internacional Escravatura e Mudanças Culturais, que a Unesco promoveu, no final de 2001. Em 1536, Évora foi a sede da Inquisição em Portugal. Agora, simbolicamente, comportava um evento voltado para a confraternização entre os povos e as culturas diferentes.
Decididamente, o mundo mudou. Historiadores, geógrafos, antropólogos, linguistas do mundo inteiro buscavam, precisamente ali, as raízes da escravidão moderna. Estudiosos como José Capela, Alberto da Costa e Silva, Alfredo Margarido, Joel Rufino dos Santos se debruçaram durante alguns dias sobre a formação do mundo à época das chamadas Descobertas e, também, sobre a luta dos povos colonizados. Convocado pela Unesco, eu fui um dos 17 expositores do Colóquio. Uma honra. Minha fala versou sobre o Quilombo dos Palmares.
Fui o último a intervir no Colóquio. Aquele foi, talvez, o maior momento da minha atividade como historiador. O meu destino intelectual foi como que traçado naquela encruzilhada.
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