sábado, 25 de maio de 2019

Profissão de fé política: Editorial / O Estado de S. Paulo

O Congresso Nacional está sob ataque do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores mais radicais. Por ora, são ataques retóricos, mas embutem um profundo desprezo pela política e bastam para provocar perniciosos efeitos na relação entre os Poderes e na construção de uma agenda de interesse do País.

Quando se lança uma turva névoa de suspeição sobre todos os parlamentares e quaisquer negociações políticas, a vigência da Constituição corre riscos. A Lei Maior proclama a democracia representativa logo em seu preâmbulo. E não há símbolo maior de sua vitalidade do que o pleno funcionamento do Congresso Nacional.

Em 128 anos de história – desde a Constituição de 1891, que determinou que o Poder Legislativo seria exercido pela Câmara dos Deputados e pelo Senado –, as duas Casas tiveram de lidar com toda a sorte de ameaças e violências. Não foram poucos os períodos em que o Congresso Nacional esteve subjugado. A luta para acabar com os vácuos de liberdade e restabelecer a democracia no País foi árdua e contou com a união de várias forças da Nação. Sem Congresso livre, não há democracia. E democracia é um regime frágil que requer a diuturna vigília de todas essas forças.

As novas investidas contra o Congresso vêm na forma de uma demonização indiscriminada da atividade política, como se tudo que dela deriva fosse espúrio. Não raro, este sentimento tem sido promovido por autoridades que, por dever de ofício, dever moral ou simplesmente decoro, deveriam formar a primeira linha de defesa de um Congresso altivo e da política como locus e meio para a concertação da miríade de interesses que merecem atenção em Estados Democráticos de Direito, como é o caso do Brasil.

É evidente que a sociedade, imperfeita como todos os indivíduos que a compõem, não haveria de estar representada por 594 parlamentares imaculados, cada um deles cioso de seu papel e capacitado para o exercício do múnus público. Assim fosse, estaríamos falando de outra coisa, não de democracia representativa. A liberdade corre perigo quando desvios das partes são usados para desqualificar o todo.

As redes sociais subverteram a mediação do debate público, para o bem e para o mal. Deram voz e alcance a indivíduos que antes não eram levados a sério. É nesse terreno virtual que viceja a praga liberticida. Nele houve significativos avanços, mas houve quem enxergasse na massa caótica de insatisfação e ressentimento o fio condutor ideal para seus desígnios antidemocráticos.

O sentimento de aversão à política floresceu em meio às jornadas de junho de 2013. Foi estimulado por alguns membros do Ministério Público e do Poder Judiciário na esteira da Operação Lava Jato. Os indiscutíveis méritos do trabalho da força-tarefa fizeram alguns de seus protagonistas se arvorarem em paladinos da moralidade e da salvação nacional. Para tanto, julgaram-se acima de todos, em especial dos políticos, das leis e da Constituição. A eleição de Jair Bolsonaro é corolário dessa anomalia.

Sua ascensão à Presidência da República representou o triunfo da aversão à política. Negociações legítimas são apresentadas como “conchavos” para escamotear a inaptidão e a incompetência do presidente para conduzi-las. Não há, no entanto, nada melhor do que a boa política para dar conta dos problemas nacionais. Aí está o resultado do “novo paradigma”: um País cindido e paralisado.

Em 1868, Joaquim Nabuco, um dos mais notáveis brasileiros, escreveu um ensaio chamado O povo e o trono: profissão de fé política, no qual faz enfática defesa dos valores da representação política. “Em vez do regime pessoal”, escreveu Nabuco, “virá o puro governo representativo. Em vez da vontade de um só, virá a voz da praça pública. Em vez do imperialismo, teremos a democracia.”

Ainda transcorreriam pouco mais de duas décadas até que a representação política sonhada por Nabuco triunfasse na ordem constitucional do País. É este o legado democrático que há de ser defendido dos aventureiros, hoje e sempre.

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