segunda-feira, 30 de novembro de 2020

George Gurgel de Oliveira* - Friedrich Engels, o marxismo e a sociedade contemporânea

Estamos comemorando o bicentenário de nascimento de Friedrich Engels, um dos maiores pensadores do século XIX, junto com seu amigo e irmão siamês Karl Marx.

Engels nasceu em Barmen, na Alemanha, em 28 de novembro de 1820. Teve uma formação cosmopolita. Fez o serviço militar em Berlim, em 1841, quando passou a conhecer as ideias de Hegel, e integrou-se ao grupo dos Jovens Hegelianos, sob a liderança de Bruno Bauer. Após o serviço militar, retornou a Barmen e, por imposição paterna, foi para a Inglaterra, em 1842, para a cidade de Manchester, berço da Revolução Industrial.

A paixão revolucionária tomou conta dele, desde jovem.  Quando chegou à Inglaterra, sob a influência de Moses Hess, que conheceu em Berlin, suas ideias já eram socialistas. Em Manchester, foi trabalhar na indústria têxtil, em uma fábrica que o pai tinha em sociedade com ingleses. Sua permanência em território britânico, o contato permanente com trabalhadores industriais, com o próprio movimento Owenista e Cartista e os seus próprios estudos sobre a situação dos operários naquele país, levaram à análise e à publicação, em 1845, do seu primeiro livro: A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, quando tinha 24 anos incompletos. Trata-se de um clássico sobre a situação precária das atividades laborais nas fábricas inglesas, no século XIX, envolvendo também o trabalho infantil, da mulher e das desumanas jornadas laborais.

Foi quando conheceu a operária irlandesa Mary Burns, que se tornou sua companheira e muito lhe ajudou no conhecimento da realidade dos trabalhadores ingleses, irlandeses e do movimento operário na Inglaterra. Assim, além da atividade fabril, viveu plenamente o mundo dos trabalhadores, o que foi fundamental para seu trabalho intelectual e revolucionário. 

Então, Engels chegou à conclusão que a classe operária, surgida com a Revolução Industrial, era o ator decisivo para a construção da Sociedade Futura, a Sociedade Comunista.

Depois de Manchester, viveu na Bélgica e na França, onde teve o primeiro efetivo encontro com Karl Marx, no outono de 1944, no Café La Regence, em Paris. Desde então, iniciou uma parceria intelectual e uma amizade que se estenderam por toda a vida, tendo participado ativamente do processo político-revolucionário de construção dos fundamentos, na maioria das vezes em parceria com o próprio Marx, do que, a partir da morte deste e dele próprio, passou a ser conhecido como Marxismo.

A Sagrada Família foi o primeiro livro escrito junto por eles e publicado ainda em 1845. Nesse período, afastaram-se do materialismo de Feuerbach e dos Jovens Hegelianos, construindo uma original concepção materialista, dialética, da história. Na Ideologia Alemã, trabalho realizado no período 1845-1847, eles fazem uma síntese desta concepção.  Ainda desse período são os trabalhos de Engels sobre economia política e a relação entre a Revolução Industrial e o desenvolvimento de uma consciência dos trabalhadores como classe na Inglaterra, contribuição que foi muito valorizada por Marx.

Desafiados pela internacionalização do movimento dos trabalhadores, os dois começaram a participar da Liga dos Justos, na seção alemã posteriormente Liga dos Comunistas. No ano em que lançaram O Manifesto Comunista, ocorreu a Revolução de 1848, na França, que se estendeu por uma boa parte da Europa.  Eles retornaram à Alemanha, onde participaram do movimento revolucionário até à vitória da contrarrevolução. Trabalharam no jornal Nova Gazeta Renana, período em que Engels começou a se interessar pela questão militar, objeto de pesquisa dele por toda a vida. Suas impressões sobre a revolução e a contra-revolução na Alemanha estão registradas em artigos para o New York Daily Tribune (1851-1852), assinados por Marx.

Depois da derrota da Revolução de 1848, sairam da Alemanha, viveram na Suíça e, posteriormente, foram para a Inglaterra. Engels, em 1850, voltou a viver em Manchester, retornando a trabalhar na fábrica de copropriedade da família, durante 20 anos. Alem do trabalho fabril, deu continuidade ao trabalho intelectual e político, na divulgação das suas ideias, sempre em parceria com Marx.  Desta época, registre-se o interesse de Engels em relação às Ciências Naturais. Começou a fazer uma conexão entre a dialética e a concepção materialista da natureza, aprofundando seus estudos sobre as ciências naturais. Este trabalho inacabado, “A Dialética da Natureza”, foi publicado posteriormente em Moscou, em 1925.

Neste período, Marx e Engels já divulgavam seus trabalhos e suas ideias nas organizações e nos movimentos dos trabalhadores, nos jornais e periódicos revolucionários na Europa e nos Estados Unidos. A luta política se intensificava. O Fantasma do Comunismo rondava a Europa, materializado em Marx e Engels, cujas ideias já eram criticadas e proibidas de circular nos grandes jornais da época.            

Após 20 anos de trabalho, em Manchester, e acumular um razoável patrimônio, Engels, em 1870, foi finalmente viver em Londres, muito próximo à casa de Marx. Desde então, com a saúde de Marx ficando cada vez mais debilitada, Engels foi assumindo a liderança do movimento revolucionário, passando a ser uma das principais lideranças da Internacional, influenciando o trabalho político e de organização dos trabalhadores na Europa e nos EUA.

Então, fez um enfrentamento político e ideológico contra as correntes positivistas do Partido Social-Democrata da Alemanha. São importantes contribuições desta época o Anti-Dühring, publicado em 1878, considerado a primeira tentativa de uma exposição geral das ideias de Marx, reafirmando os princípios do materialismo histórico dialético frente à luta interna travada contra o positivismo da socialdemocracia alemã, e Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico.

A esta altura, Engels foi se tornando a principal liderança da Internacional junto aos novos movimentos socialistas, surgidos a partir de 1880, inclusive já com a participação dos revolucionários russos exilados. Publicou, em 1884, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, em 1886. Após a morte de Marx, em 1883, Engels dedicou-se à organização e à publicação do segundo e terceiro volumes de O Capital, ocorridos nos anos de 1885 e 1894. Foi um trabalho fundamental para o conhecimento e a publicação da obra seminal de Marx. Há um reconhecimento muito grande deste trabalho realizado por Engels, inclusive o volume 3, por muitos reconhecido como uma coautoria.

Participou também ativamente da formação da Segunda Internacional, considerando o melhor caminho dos trabalhadores, de forma a evitar uma guerra entre a Alemanha e a França. Vislumbrara a tragédia que aconteceria com a I Guerra Mundial!

Finalmente, nos últimos anos de sua vida, Engels identificou importantes mudanças no capitalismo do final do século XIX, inclusive o papel que o Parlamento já desempenhava na sociedade europeia. Na Introdução, feita para a publicação do livro de Marx, As Lutas de Classe na França, ele chama a atenção para a possibilidade de outras maneiras dos trabalhadores chegarem ao poder.  Considerava que não deveriam mais pensar na vitória da Revolução como uma única batalha e sim, que deveriam progredir, de posição em posição, com uma luta dura e tenaz. Apontava, assim, outras alternativas de chegada dos trabalhadores ao poder, sinalizando novas possíveis formas de hegemonia a serem conquistadas pelo proletariado no caminho de superação da sociedade capitalista.

 Trabalhava na edição do volume 4 de O Capital, quando morreu no ano de 1895.

 

Ideias excepcionais

Foi desta forma que Marx e Engels construíram um método de análise - o do materialismo histórico dialético -, para se compreender as relações políticas, econômicas e sociais da Sociedade, nas relações entre si e com a própria natureza, a segunda natureza, segundo Marx, transformada pela própria Humanidade.

A partir desta perspectiva, construíram uma interpretação materialista e dialética dos fenômenos políticos, econômicos e sociais, particularmente do capitalismo industrial e agrário do século XIX, fazendo uma crítica contundente ao funcionamento deste sistema na sua totalidade, dos seus meios de produção, do seu processo de acumulação, da natureza e da origem do trabalho, do capital e dos conflitos e contradições inerentes à sociedade capitalista.

Uma das características principais do pensamento, tanto de Engels, quanto de Marx, é a indissociabilidade entre a teoria e a prática. Precisavam da Filosofia e das Ciências em geral não apenas para conhecer melhor a realidade e, sim, principalmente, para transformá-la.  Na sociedade capitalista, identificaram nos trabalhadores assalariados, particularmente no proletariado industrial e na sua organização, os agentes de realização da revolução mundial, que deveria começar nos países capitalistas da Europa Industrial, no caminho da construção de uma nova sociedade, a Sociedade Comunista.

A Sociedade Futura, a ser construída, teria a hegemonia e a valorização dos que trabalham, o trabalho liberto, em cooperação, sem exploradores e explorados.  Desde então, as derivações e as tendências as mais diversas, originadas do pensamento e da atuação revolucionária de Marx e de Engels, construíram, ainda no século XIX, durante suas vidas, uma hegemonia no movimento político e de organização dos trabalhadores a nível mundial. Nos séculos XIX e XX, as ideias dos dois construíram, nas mentes e nos corações de trabalhadores do mundo inteiro, a possibilidade da Revolução Socialista.

A partir da vitória, em 1917, da Revolução de Outubro, liderada por Lênin, legatária das concepções de Marx e de Engels, as ideias e as obras destes dois excepcionais pensadores e ativistas alemães passaram a ter uma ampla divulgação, em todo o planeta. Após a morte de Lênin, como “marxismo-leninismo”, eram ideias e obras apropriadas de acordo com a conveniência oficial, inclusive no próprio movimento comunista internacional, que tinha uma forte subordinação à União Soviética.

A revolução russa abriu o caminho das Revoluções Socialistas vitoriosas. Posteriormente, a China, os países do Leste europeu e Cuba herdaram este mesmo modelo soviético que se esgotou como referência, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o término da URSS, em 1991.

Ainda no século XX, tais ideias foram apropriadas por muitos movimentos de luta contra o colonialismo e de independência dos povos da África, da Ásia e da América Latina. Fora do “marxismo-leninismo”, nos países da Europa Ocidental e, particularmente na Itália, com a contribuição original de Gramsci, buscou-se um caminho original para a revolução no Ocidente, diferente do modelo soviético.

Assim, as ideias de Marx e Engels foram e continuam sendo discutidas na atualidade, principalmente nos períodos das crises recorrentes do capitalismo. Os mundos da Cultura e do Trabalho continuam desafiados à construção de um humanismo que incorpore os novos desafios e a complexidade da Sociedade atual, funcionando em rede e, sob a pressão permanente das ruas, dos movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais, religiosos, feminista e LGBT+, respeitando a diversidade humana e a natureza, na perspectiva de construção de uma  outra  formação histórica com a hegemonia dos que trabalham e produzem a riqueza material e cultural da Humanidade.

Por fim, queremos falar do ser humano Engels. Ele tinha, na sua vida cotidiana, a generosidade da proposta revolucionária que vislumbrava para a Humanidade. O humanismo de Engels era categórico. Além da ajuda muito conhecida de apoiar financeiramente a família de Marx, por muitos anos, até e depois da morte do amigo, fez muito mais: deixou no seu testamento a determinação de que os seus bens materiais e financeiros deveriam ser divididos em três partes: a primeira, para as filhas de Marx; a segunda, para os velhos companheiros de luta; e a terceira e última, para o Partido Social-Democrata da Alemanha, do qual foi fundador, junto com Marx. Ainda, com destaque, observava: quando todos recebessem os recursos do testamento tomassem um bom vinho branco, que gostava muito, de preferência um Chateau Margot, safra de 1848.

Assim, Engels viveu plenamente a vida: revolucionário nas mudanças que queria para a construção de um mundo melhor; revolucionário na vida cotidiana, nas relações políticas, econômicas, sociais e afetivas, com um senso refinado de bom humor que tinha e bons vinhos!

Por tudo isso, precisamos lembrar e comemorar os 200 anos de nascimento de Friedrich Engels.

Salve Engels!

Humanista do século XIX, da Sociedade presente e futura.

*George Gurgel de Oliveira, professor da UFBA e da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade

 

2 comentários:

ERNEST CHRISTIAN BOWES disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ElviMejia disse...

Parabéns pela abordagem,George!