terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Hélio Schwartsman: Deus e a Covid

Folha de S. Paulo

Se Deus é o responsável pelo surgimento do vírus, como sustentar que Ele é benevolente?

Em tempos de terraplanistas, olavistas e antivaxxers, os criacionistas andam surpreendentemente quietos. Dá para entender. Uma pandemia viral que já matou quase 6 milhões e que não para de produzir novas cepas, como a ômicron BA.2, não é uma ocasião muito propícia para negar a evolução darwiniana. Fazê-lo jogaria a responsabilidade por essa carnificina diretamente no colo de Deus.

O criacionismo se apresenta numa paleta variada de sabores. Há desde os criacionistas da terra jovem, que afirmam que o planeta não tem mais do que 6.000 anos e que cada espécie que nele existe, incluindo as de vírus, foi desenhada por Deus, até os defensores da evolução teística, para os quais o Demiurgo projetou um Universo completo com todas as leis naturais e nunca mais precisou trabalhar.

Para os criacionistas do primeiro tipo e suas adjacências, o problema da teodiceia (justiça divina), cai como uma bomba. Se Deus é o responsável direto pelo surgimento desse vírus e das variantes que nos causam tanto sofrimento, como sustentar que Ele é um ser benevolente? Como já notara Epicuro em plena Antiguidade, onisciência, onipotência e benevolência não são compatíveis com um mundo no qual o mal se faz presente.

Uma forma de tentar livrar a cara de Deus é colocá-lo num lugar tão alto na hierarquia que Ele já não responda pelos erros dos baixos escalões. É mais ou menos o que buscam fazer as versões do criacionismo mais próximas da evolução teística. O Criador concebeu um mundo bem bacaninha e não é sua culpa se nós o usamos mal, tendo desenvolvido um padrão de ocupação que favorece o surgimento e a difusão de doenças, entre outros flagelos.

O problema com essa estratégia é que ela torna Deus algo indistinguível da natureza. Ele pode até deixar de ser o culpado por certos desastres que afligem a humanidade, mas também deixa de ser um Deus pessoal para o qual vale a pena rezar e fazer preces.

 

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Deus é energia,uma fonte criadora de tudo,portanto,não é ''pessoal'' - A teoria evolucionista de Charles Darwin é referendada pelo espiritismo,todo ateu devia ler ''A Caminho da Luz'',psicografia de Chico Xavier,é de cair o queixo.

Paulo Bedaque disse...

A caixa de Pandora trazia todos os defeitos da humanidade. Quando aberta, eles escaparam e sobrou um, a esperança. Ela não é vista como defeito da humanidade na tradição judaico-cristão, pois é um tipo de oração que se faz ao criador quando se diz "Eu espero que a pandemia acabe logo" ou coisas do gênero. Pretensamente, como lembra Russel, as decisões divinas são perfeitas e intocáveis por natureza e deveriam ser imutáveis e inquestionáveis. Quando se ora, se acredita ter alguma chance de se alterar as decisões divinas, que deveriam ser imutáveis para o crente. É uma espécie de crença na possibilidade de se ser sócio de Deus nas decisões cósmicas. Para quem crê, a oração deveria ser o cúmulo da pretensão, da arrogância, mas convivem com esta incoerência. Para quem não crê, a esperança é possivelmente um defeito da humanidade.