O Globo
Os inabaláveis negam justamente o que nos
faz humanos: nossa capacidade de mudar mesmo aceitando que o pecado de ontem é,
hoje, trivial.
A consciência da nossa finitude certamente
explica a atração pelo permanente. Por isso os que pregam certezas atraem
tanto. Eles nos impingem que existe mesmo a lâmpada de Aladim e o próprio
Aladim. Coisas permanentes como o Everest, ou incorruptíveis como o ouro,
compensam nossa impotência diante da morte e do esquecimento. Eventos ou
contextos extraordinários — carnaval, guerra, tortura — reavivam identidades que
não são inatas, mas internalizadas por nossas línguas e culturas.
No entanto sabemos que injustiças e erros
são cometidos e descobertos — a menos que se acredite numa sociedade perfeita —
em todo lugar. A subordinação da mulher, a crueldade da escravidão, o machismo
feminicida, o preconceito estrutural com os velhos, os lucros promovidos pelo
capital contra o trabalho, o tabu de escolher sexualidades, nacionalidades e
etnias, de contrariar costumes e, por fim, a abjeta tortura praticada no regime
militar revelaram o lado perverso do nosso “bom-mocismo”, graças ao historiador
Carlos Fico e à jornalista Míriam Leitão.
Hoje, a tortura, além de vergonha e desonra, é uma abominação jurídica afim aos totalitarismos, mas ela tem uma sólida história. Na Contrarreforma (séculos XVI e XVII), torturar foi legal contra hereges. Fora do nosso lado, era válido extrair confissões pela tortura, que despe de humanidade sobretudo o torturador.
Vivemos dias peculiares. Uma Semana Santa
embrulhada numa Quaresma e um carnaval de desfile; a brutal agressão de uma
super Rússia contra um ex-aliado num mundo cuja tecnologia dificulta segredos.
E a “novidade” de que tivemos tortura no regime militar ao lado de mais outra
novidade: mais crise bolsonarista.
O problema dessas coisas fora de hora e
lugar é como encaixá-las como parte de nosso passado. Um passado escravocrata
reprimido que volta tão forte quanto o populismo e a corrupção. Esquecidos dos
pelourinhos, redefinimos o carnaval e engendramos um sistema jurídico que solta
corruptos e esquece inocentes.
O Brasil, como dizia Tom Jobim, não é para
principiantes...
Experimentamos todos os regimes políticos!
De catequistas católicos e da fidalguia colonial, passamos a Reino graças à
fuga de Dom João VI para o Rio de Janeiro. O único monarca que fugiu de seu
reino para colocar, como diz brilhantemente o historiador social Patrick
Wilcken, todo “um império à deriva”.
Tal movimento criou uma autovisão insegura
e ambígua daquilo que veio a ser o Brasil. Debaixo do Equador, tudo seria
possível, como diz Chico Buarque de Holanda, repetindo seu pai historiador,
Sérgio. Um espaço onde a virtude fica sempre entre o sim e o não. Existem leis
regulando tudo menos um elo de amizade ou parentesco. Temos tudo, menos o
esforço para honrar uma igualdade republicana que chegou aos trambolhões, se é
que li com cuidado José Murilo de Carvalho.
No meu trabalho, falo em éticas dúplices
(da casa e da rua) — do pessoal e do impessoal —cuja impiedade tem seu limite
na tortura, no uso particular dos recursos públicos e num absolutismo que
permanentemente ronda o cargo de presidente da República.
Com tantas experiências profundas, entre as
quais a maciça escravidão negra africana foi a que mais consagrou um estilo de
vida aristocrático, temos, até hoje, o dilema de honrar a igualdade e a
democracia, personalizando nossos supostos inimigos. Quando a tortura
reaparece, desmente que somos somente o belo e bondoso “país tropical,
abençoado por Deus”, e há tenebroso vislumbre dos pelourinhos, relembrando
nossa imensa dívida para com um regime democrático decente. Porque perfeito,
nenhum há se ser, como Vico e Herder afirmavam.
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