sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Maria Cristina Fernandes - O futuro da direita sem a carona bolsonarista

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Coube a Lula o feito de afastar a sombra da extrema direita sobre o país. A tarefa de mantê-la longe não é apenas de seu governo

O presidente da Câmara, Arthur Lira, foi o primeiro do campo governista a reconhecer o resultado eleitoral em telefonema ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Seu correligionário, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, disse não se opor se for o desejo de seu partido se aliar a Lula. O presidente do União Brasil, Luciano Bivar, que quatro anos atrás abrigou Jair Bolsonaro em seu finado PSL, diz que seu partido tem “uma dívida com a esquerda”. O Republicanos busca tanto uma brecha que o presidente eleito recebeu até “perdão” do pastor honorário da agremiação, Edir Macedo. Restou o PL, que lançou Bolsonaro à Presidência em 2026 e anunciou-se na oposição sem reconhecer o resultado das urnas. Ainda está por se confirmar se permanecerá com este discur

Nada disso surpreende. A novidade é que esta virada de casaca se dê na eleição em que a direita se mostrou em sua melhor forma no Congresso, desde a redemocratização. Apesar do governismo atávico, também surpreende que, em tão pouco tempo, após uma eleição presidencial com uma direita tão competitiva, suas lideranças abandonem a carona de um projeto exitoso de conquista de votos. A exceção anunciada pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, ainda está por mostrar sua viabilidade.

O desapego da direita ao seu eleitorado é a pior notícia da transição. Desde 2002, quando teve seu pior desempenho numa eleição presidencial, a centro-direita tem tido votações crescentes. Em 2018, a extrema direita se desgarrou e venceu. E, mesmo neste ano, a votação do presidente Jair Bolsonaro (49%), ainda que inferior à de quatro anos atrás (55%), representou a maior votação nominal da direita no Brasil, com 58,2 milhões de votos. O êxito de Bolsonaro em 2018 e, em grande parte, em 2022, deu-se no vácuo da direita democrática. Se este campo político aderir ao adversário, está franqueada a porta para o bolsonarismo e seus valores sobreviverem eleitoralmente. Até porque parece terem arrumado um partido para abrigá-los.

O Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal têm mecanismos e provas em abundância para tanger Bolsonaro da política nacional, mas nenhum enterro teria mais eficácia do que aquele promovido por uma direita que se mostrasse capaz de segurar seu eleitor.

Quando publicou “Vida, morte e outros detalhes”, um livro de memórias que se seguiu à morte de seu irmão, Ruy, o historiador Bóris Fausto citou aquele em que Jairo Nicolau (UFF) analisou os resultados de 2018 (“O Brasil dobrou à direita”, Zahar, 2020), e se perguntou quando o cientista político poderia tirar a crase e aproveitar o título para um novo livro.

Ainda não será desta vez. O Brasil, diz Jairo Nicolau, dobrou à direita e ficou. Ele finca pé na expressão partidária dos resultados legislativos, que deram ao partido de Bolsonaro, o PL, a condição de maior legenda nas duas casas do Congresso, manteve o PT competitivo, com uma federação de 80 cadeiras, mas desidratou outros partidos de centro-esquerda, como o PSB e o PDT, dizimou o PSDB, e manteve relativamente inalteradas as bancadas do PP, Republicanos, PSD e MDB, o meio-campo da política nacional, em que tudo acontece e nada avança.

Pela pesquisa de Bruno Bolognesi, Ednaldo Ribeiro e Adriano Codato, descrita em “Uma nova classificação ideológica dos partidos políticos brasileiros” (Dados, 2022), os partidos de direita vão ocupar 63% da Câmara. Publicado em janeiro, o levantamento, como todos do gênero, carece de atualizações impostas pela conjuntura. Dificilmente a maioria dos 519 cientistas políticos que responderam à enquete para situar os partidos voltariam, por exemplo, a colocar o MDB de Simone Tebet à direita do PTB do pistoleiro Roberto Jefferson. Sendo este, porém, o esforço mais recente de posicionar os partidos brasileiros ideologicamente, é o parâmetro que se tem para se aquilatar o recorde de ocupação legislativa pela direita no pós-redemocratização.

Jairo vê no surgimento de uma militância de extrema direita um dos maiores fenômenos desta eleição. Se nos Estados Unidos esta militância foi personificada em Jake Angeli, o ativista do QAnon vestido de peles e chifres, que acredita numa guerra santa contra pedófilos adoradores de Satanás, no Brasil há uma multitude de fantasias. Vão dos verde-amarelos gaúchos que comemoraram ajoelhados e aos prantos a “prisão” do ministro Alexandre de Moraes ao comerciante pernambucano Junior Cesar Peixoto, que seguiu estrada afora agarrado à boleia do caminhão fura-bloqueio.

Para além do estereótipo, o comparecimento confirma o impacto da militância de direita. Como o Valor (19/10) mostrou, no primeiro turno das 26 capitais e do Distrito Federal, houve redução de abstenção em sete, relativamente a 2018. Em cinco delas, foi Bolsonaro quem ganhou. O dado sugere que, se a política do passe livre, pela qual aliados de Lula tanto batalharam, beneficiou grandes fatias do eleitorado de baixa renda, que sufragou o presidente eleito, também beneficiou o eleitor de Bolsonaro.

O analista de opinião pública Orjan Olsen se debruçou sobre os dados de comparecimento entre o primeiro e o segundo turno em oito grandes municípios do estado de São Paulo (Campinas, Guarulhos, São Bernardo do Campo, Ribeirão Preto, Diadema, São José dos Campos, São José do Rio Preto e a capital) e constatou que, naqueles em que Lula ganhou no primeiro turno, houve redução de comparecimento ou aumento muito discreto no segundo. Já naqueles vencidos por Bolsonaro houve um aumento de comparecimento ou estagnação. Numa projeção para o conjunto do país, é este maior comparecimento do eleitor de Bolsonaro, principalmente no Sul e Sudeste, além da maior fatia abocanhada do eleitorado de Simone Tebet e Ciro Gomes, que parece explicar a arrancada que levou o atual presidente a diminuir de 6,2 milhões para 2,1 milhões a diferença para Lula entre o primeiro e o segundo turno.

O PT não virou em nenhuma cidade. Conseguiu manter a dianteira aumentando a vitória naquelas em que já havia ganhado no primeiro turno, como São Paulo, onde passou dos 39% de Fernando Haddad, em 2018, para 53%. Lula protegeu sua maior reserva eleitoral, o Nordeste, do avanço bolsonarista, tendo sido a única região em que ganhou de cabo a rabo, mas foi a redução da vantagem bolsonarista no Sudeste que garantiu a vitória.

Dificilmente será possível mensurar o impacto dos estudos do Ministério da Economia sobre o congelamento do salário mínimo e aquele decorrente do pavor causado pelo tiroteio de Roberto Jefferson ou pelas imagens de Carla Zambelli correndo nos Jardins com uma arma em punho. O que dá para dizer é que, não fosse a contenção, no Sudeste, da reta final bolsonarista, o resultado poderia ter sido diferente.

O presidente eleito já deixou claro que entendeu o recado. Este não será um governo do PT, da esquerda ou seu. Abrigará o rechaço a Bolsonaro que pegou carona em sua candidatura. A nomeação de Geraldo Alckmin para chefiar a transição já é a primeira resposta a este apelo. Por mais habilidade que tenha para montar um governo que reflita esta correlação, porém, não será capaz de representar a totalidade de forças premiadas pelo resultado eleitoral mais polarizado da história do país. Alguém terá que ficar de fora. Senão a cada liderança da extrema direita caçada pelo Judiciário outras serão ungidas pelos milhares que continuam a buzinar em frente aos quartéis militares Brasil afora. O problema para uma direita democrática continua a ser o de sempre: com que roupa vai disputar voto? A do Estado mínimo para necessidades máximas deu tão ruim que o ministro Paulo Guedes termina o governo como uma sombra esquálida de suas convicções.

Até a véspera do segundo turno, as pesquisas indicavam que o combustível do bolsonarismo foi o voto anticorrupção. Fica difícil entender como, depois do orçamento secreto, das rachadinhas, do patrimônio imobiliário construído com dinheiro vivo, isso ainda seja possível. Mas é. As últimas rodadas do Quaest, instituto ao qual Jairo Nicolau presta uma consultoria metodológica, são cristalinas. A maior razão para os 58 milhões obtidos por Bolsonaro foi a identificação de Lula com a corrupção. O maior medo do eleitor que votou em Bolsonaro era o da volta da corrupção. Em grande parte isso se deve à investida digital do bolsonarismo, mas outra fatia, não desprezível, é a ilusão do PT de que a votação de Lula é um desagravo à sua prisão.

Dos desafios de Lula, a obtenção de um atestado de idoneidade que a eleição não lhe deu é um dos poucos capazes de fundir o motor do bolsonarismo. A necessidade de formar uma ampla base de governo e o apego dos partidos pela ocupação predatória do Estado não facilitarão sua tarefa. Mas nem só de discurso contra a corrupção se alimenta o bolsonarismo.

Na primeira sexta-feira depois do segundo turno, numa mesa do Cebrap, mediada por Maria Hermínia Tavares (USP), Felipe Nunes (UFMG e Quaest) mencionou o poder da máquina de desinformação como fermento da extrema direita.

Fernando Limongi (FGV) buscava respostas no impacto da gangorra das políticas sociais e econômicas sobre a vida das pessoas até que Flávia Biroli (UnB) abriu uma janela para os valores que se enraizaram em núcleos familiares à medida que as conquistas de gênero, a precarização do trabalho e o ambiente salve-se-quem-puder se tornou a lei de sobrevivência para a maioria.

A decisão de Lula de não concorrer à reeleição mantém o foco eleitoral de aliados de centro que atraiu, como Simone Tebet, Geraldo Alckmin, ou mesmo daqueles de seu campo, como Marina Silva ou Fernando Haddad. Por outro lado, para além de Valdemar da Costa Neto, a direita tem nos governadores Tarcísio de Freitas, de São Paulo, e Romeu Zema, em Minas, as chances de projetar um futuro sem Bolsonaro. Coube a Lula o feito de afastar a sombra da extrema direita sobre o país. A tarefa de mantê-la longe não é apenas de seu governo, mas de um conservadorismo desgarrado da liderança mais popular que já produziu.

Maria Cristina Fernandes,

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Artigo looonnngo,rs.