segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Angela Alonso* - Lições da História

Folha de S. Paulo

Simples nos costumes e moralizadores do Estado, Floriano Peixoto e Jair Bolsonaro se recusaram a transmitir seus cargos

Eleição ganha, posse marcada, o futuro presidente circulou pela capital da República. Um entusiasta o reconheceu e, do meio da multidão, gritou seu nome e um viva. Voz logo abafada por sopapos de fanáticos do chefe de governo em fim de mandato. Era dos que o encorajavam a manter no bolso as chaves da República, com um decreto instituindo a ditadura.

Por isso, na posse, o eleito afirmou o compromisso com todas —não só quatro— as linhas da Constituição. Pediu: "Que todos os brasileiros, especialmente os depositários do poder público, contribuam com seus esforços dedicados e perseverantes para conseguirem que a República seja o que deve ser —um regime de paz e de ordem, de liberdade e de progresso, sob o império da justiça e da lei".

Podia ser 2023, mas era 1894. Prudente de Moraes assumia a nação depois de Floriano Peixoto, que gerara em torno de si um culto de obcecados. Inconformados com a transição, arregimentaram-se em "batalhões patrióticos" e saíam na mão ou na bala com quem desdissesse as qualidades de seu mito. Convictos de que dele dependia a salvação nacional, exigiam sua volta.

Assim insuflado, como Bolsonaro, Floriano não passou a faixa. Negou-se a tratativas de transmissão do governo. O marechal, como o ex-capitão, vendia-se como a simplicidade nos costumes e o moralizador do Estado. Coincidiam também no desleixo.

Prudente encontrou a sede da República em sujeira prima daquela que Janja exibiu na Globo. Em vez de Miami, Floriano recolheu-se às suas Alagoas. Lá esperava, espalharam seus acólitos, o chamado de retorno.

A ameaça golpista assustou. Mas o convocado fez o favor de ir logo a óbito. Supondo que o perigo da ditadura falecia junto, legalistas tiraram as mangas e a língua de fora e dedicaram-se a sovar o presidente.

Prudente foi malhado em prosa e verso, na imprensa e no Congresso. Em vez de persistir unida na defesa da Constituição e das instituições republicanas, a parte civilizada da sociedade e dos partidos convergiu no ataque sem tréguas ao governo.

A estratégia de criticar e obstruir tornou fraco o presidente e o deixou à mercê de novos assaltos. A orfandade não levou os florianistas a ensarilharem as armas. Encontraram no vice-presidente, Manoel Vitorino, seu incendiador da República, a postos para comandar qualquer insubordinação.

O ativismo golpista prosperou porque os partidos de oposição começaram a disputar a eleição seguinte, nem bem esfriada a urna, descuidando de garantir sua condição de possibilidade: o governo constitucional, que a duras penas sobrevivera à ameaça de golpe de Estado.

sanha oposicionista em sangrar o governo manteve a República à beira do colapso nos anos seguintes. Permitiu que o florianismo prosperasse sem Floriano, a tal ponto que Vitorino arriscou usurpar a cadeira presidencial.

Apenas o ato extremo, a tentativa de assassinar o presidente, suscitou apoio vigoroso dos legalistas. Então os florianistas foram efetivamente alijados do jogo institucional. Mas já era quase fim de mandato.

Ficou para Campos Sales o refrigério de governar sob a paz que Prudente pedira ao tomar posse. A aposta na crítica acima de tudo e no autointeresse acima de todos atrasou em três anos a pacificação do país.

A história pouco serve se quem tem a possibilidade de influir sobre seus rumos não se orienta por ela.

*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

2 comentários:

Anônimo disse...

Texto muito interessante!

ADEMAR AMANCIO disse...

Pra quem sabe ler,um pingo é letra.