Folha de S. Paulo
Simples nos costumes e moralizadores do
Estado, Floriano Peixoto e Jair Bolsonaro se recusaram a transmitir seus cargos
Eleição ganha, posse marcada, o futuro
presidente circulou pela capital da República. Um entusiasta o reconheceu e, do
meio da multidão, gritou seu nome e um viva. Voz logo abafada por sopapos de
fanáticos do chefe de governo em fim de mandato. Era dos que o encorajavam a
manter no bolso as chaves da República, com um decreto instituindo a ditadura.
Por isso, na posse, o eleito
afirmou o compromisso com todas —não só quatro— as linhas da Constituição.
Pediu: "Que todos os brasileiros, especialmente os depositários do poder
público, contribuam com seus esforços dedicados e perseverantes para
conseguirem que a República seja o que deve ser —um regime de paz e de ordem,
de liberdade e de progresso, sob o império da justiça e da lei".
Podia ser 2023, mas era 1894. Prudente de Moraes assumia a nação depois de Floriano Peixoto, que gerara em torno de si um culto de obcecados. Inconformados com a transição, arregimentaram-se em "batalhões patrióticos" e saíam na mão ou na bala com quem desdissesse as qualidades de seu mito. Convictos de que dele dependia a salvação nacional, exigiam sua volta.
Assim insuflado, como Bolsonaro,
Floriano não passou a faixa. Negou-se a tratativas de transmissão do governo. O
marechal, como o ex-capitão, vendia-se como a simplicidade nos costumes e o moralizador
do Estado. Coincidiam também no desleixo.
Prudente encontrou a sede da República em
sujeira prima daquela
que Janja exibiu na Globo. Em vez de Miami, Floriano recolheu-se às suas
Alagoas. Lá esperava, espalharam seus acólitos, o chamado de retorno.
A ameaça
golpista assustou. Mas o convocado fez o favor de ir logo a óbito.
Supondo que o perigo da ditadura falecia junto, legalistas tiraram as mangas e
a língua de fora e dedicaram-se a sovar o presidente.
Prudente foi malhado em prosa e verso, na
imprensa e no Congresso. Em vez de persistir unida na defesa da Constituição e
das instituições republicanas, a parte civilizada da sociedade e dos partidos
convergiu no ataque sem tréguas ao governo.
A estratégia de criticar e obstruir tornou
fraco o presidente e o deixou à mercê de novos assaltos. A orfandade não levou
os florianistas a ensarilharem as armas. Encontraram no vice-presidente, Manoel
Vitorino, seu incendiador da República, a postos para comandar qualquer
insubordinação.
O ativismo golpista prosperou porque os
partidos de oposição começaram a disputar a eleição seguinte, nem bem esfriada
a urna, descuidando de garantir sua condição de possibilidade: o governo
constitucional, que a duras penas sobrevivera à ameaça de golpe de Estado.
A sanha
oposicionista em sangrar o governo manteve a República à beira do
colapso nos anos seguintes. Permitiu que o florianismo prosperasse sem
Floriano, a tal ponto que Vitorino arriscou usurpar a cadeira presidencial.
Apenas o ato extremo, a tentativa de
assassinar o presidente, suscitou apoio vigoroso dos legalistas. Então os
florianistas foram efetivamente alijados do jogo institucional. Mas já era
quase fim de mandato.
Ficou para Campos Sales o refrigério de
governar sob a paz que Prudente pedira ao tomar posse. A aposta na crítica
acima de tudo e no autointeresse acima de todos atrasou em três anos a
pacificação do país.
A história pouco serve se quem tem a possibilidade de influir sobre seus rumos não se orienta por ela.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
2 comentários:
Texto muito interessante!
Pra quem sabe ler,um pingo é letra.
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